FAMÍLIA SAPORETTI

Friday, June 16, 2006

5- Líbero ... aliás livre

Américo Saporetti Filho

O imigrante se compara ao perdido no deserto com sede e tendo miragens a todo momento: os oásis aparecendo e desaparecendo numa sequência de decepções que só faz ativar a esperança de se encontrar um oásis real antes que seja tarde demais.

Hugo voltou com a família (agora era ele, a forte e brava Ida, Aldo com cinco anos, meninão sadio e a bela e graciosa Linda, flor de menina nos seus três aninhos) disposto a fazer deste o lugar da sua luta, e viver aqui toda a pujança da juventude, da maturidade e da velhice. Sabia que encontraria oásis que eram simples miragens, outros em que a água fora envenenada por maldade, mas sabia também que beberia muita água pura e cristalina, daquela que tragada nos dá a sensação de suave enlevo e bem estar.

Sim, Hugo estava no Brasil novamente para começar tudo de uma maneira mais real. Enfim, o meninão estava esquecido, era preciso pensar na família e trabalhar para sustentá-la.

Como era costume na época, aceitou trabalhar de meieiro para coronel de café. No começo do século por esse Brasil afora era costume dos coronéis quando as lavouras dos meieiros estava no ponto de colheita, escorraçarem os coitados dos imigrantes que nem votar votavam, por meios não "católicos" (apesar de serem usados pelos padres católicos também) como ameaças à família, chantagens, emboscadas, e outros meios mais simples como invasão da lavoura por animais postos pelos capatazes do poder.

Alertaram Hugo desses senões, mas aquele carcamano de boa cepa, que nunca tivera medo de cara feia e enfretava a grito mula sem cabeça, resolveu encarar de frente o perigo como um dever. Não queria continuar escravo e dependente; seus princípios de liberdade não permitiam. Falava bem alto sua veia e seu coração anarquistas, e o extremado amor ao direito à liberdade como condição inata ao homem.

Mãos à obra, que nessa terra generosa se plantando dá; vamos arar, plantar, limpar as ervas daninhas, aguar e cultivar com alegria o "nosso" chão. A lavoura de milho cresceu sadia e São Pedro ajudou mandando chuva e sol na hora certa. O moço Hugo fazia planos de dias melhores para a família, um vestido melhor para a "moglie", uma espingarda de dois canos para ele, e uma série de bugingangas para os filhos, pois como estes pequenos gostam de quinquilharias!

Hugo devaneava sentado à porta do casebre de pau-a-pique, afagando uma cachorra que tomava conta da lavoura e espantava os pássaros e os predadores.

Os meninos brincavam ao largo na terra batida salpicada de poças de água de chuva, ou despejo de água usada lançada longe, mas que invariàvelmente caía ali pertinho.

A horta com alface, tomate, couve, cheiro verde, cebola, quiabo, giló, mandioca, resplandecia ao sol, o chiqueirinho com alguns porcos e galinhas ciscando e brigando desesperadas com as minhocas meio enterradas e meio aéreas.

O claro olhar de Hugo brilhava de alegria, a mesma alegria que temos quando um filho consegue realizar um sonho da sua vida. Hugo ali naquela tarde de 1907, o sol quase se pondo, já formando vermelhidão no crepúsculo, abraçou sua Ida que cuidava da horta e falou em voz embargada: "come è bello, cara!?". Ida deixou-se ficar abraçada, e os dois olharam quietos por muito tempo o que a natureza estava lhes dando em troca de amor, carinho e muito trabalho.

Mas a história desta família de imigrantes não seria diferente das outras. Um complô estava sendo elaborado em surdina para expulsar os meieiros imigrantes das terras do coronel.

Uma manhã, antes do sol, Hugo levanta sobressaltado com barulho na lavoura. Estranhou a cachorra não latir. Levantou-se, apanhou a espingardinha e saiu, o peito aberto recebendo o ar úmido da madrugada. Olhou e viu três cavalos comendo as espigas e destroçando o milharal. Um mais afoito chegara bem perto da casa e invadira a horta e se deliciava com as folhas tenras de alfaces, couves. Aos gritos Hugo chamou Ida e como um possesso, aos socos e pontapés colocou os pangarés para fora. Verificou a cerca, havia sido cortada e os animais introduzidos criminosamente na propriedade. Procurou a cachorra, estava morta: haviam dado bola para a coitada.

Todo mundo lhe dizia que contra a força não há resistência, mas em seus princípios ele resistira muito à força até não poder mais. Não era do seu feitio levar desaforo para casa.

Assim Ida e Hugo se armaram para a desforra. Todas as noites os meninos eram postos a dormir mais cedo e Hugo ficava de tocaia, tomando conta da sua lavoura, às vezes sendo rendido por Ida, quando o sono tomava conta do seu corpo forte e musculoso.

Noites passaram calmas, uma semana. Já não aguentava mais de cansaço nas esperas, quando numa noite escura viram dois capangas do coronel junto à cerca, abrindo-a e colocando dentro da lavoura três cavalos velhos e imprestáveis, mas mortos de fome, que de imediato começaram a devastação.

Com os nervos à flor da pele e a mão no gatilho da espingarda, Hugo esperou que os capangas se fossem e fez justiça matando a tiros os pobres cavalos que nada eram senão o instrumento útil da ação tirânica dos coronéis.

Após não havia conveniência em ficar naquelas terras e enfrentar a ira e o poder do coronel. Isto Hugo sabia de cor e salteado. Urgia a retirada estratégica levando a família e o que pudesse ser carrregado. Arrumaram as trouxas e naquela mesma noite ganharam a estrada, deixando atrás muito trabalho e esperança e a alegria do coronel.

Parou na cidadezinha próxima, local de compras dos colonos das mansões dos fazendeiros, dos injustiçados, dos trabalhadores, da polícia, da administração, do prefeito, do delegado, das meretrizes, das pessoas de bem, dos imigrantes, dos comerciantes, enfim, de tudo aquilo que pode ter uma cidade dominada, inclusive subversão, ódio, gargantas a ponto de explodir. Vovô chegou lá e engrossou este último grupo: o dos injustiçados, que têm um grito preso na garganta, e que para soltá-lo são capazes de tudo, até de matar.

Instalou sua família miseràvelmente num casebre pequeno que era dividido com outra família por uma divisória de esteira. Um só cômodo de terra batida de dia era sala e cozinha e de noite estendia-se esteiras no chão e todos dormiam juntos.

Ida estava grávida de novo, viria ao mundo em 11 de outubro de 1908 mais um filho para alegrar aquele casal que desilusões e desventuras não soçobrou, porque existia fibra e vontade de viver em seus corações.

Mas estamos precipitando as coisas, no início de 1908 Hugo colocou uma portinha de consertos de sapatos e conseguia fazer algum dinheirinho enquanto Ida lavava roupa para fora e cuidava da casa, dos meninos e da horta.

Hugo batia solas de dia e de noite reunia-se com os italianos no "Palestra Itália" da cidade. Contavam casos, cantavam músicas "strompoli" e reviviam em pleno interior paulista o calor e o vigor do espírito italiano.

Vez por outra Hugo galanteava uma moreninha, uma negrinha e com seu sangue quente misturava o calor latino com o africano.

Enquanto isso, sem suspeita de nada, vovó Ida cuidava de Eduardo já rapazinho de oito anos, da mocinha Linda, formosa nos seus cinco anos e nutria no ventre Lili, e com ele arrumava o casebre, limpava o chão de terra batida, colocava esteiras ao sol para secar, preparava a comida para seu "amore".

Sempre zeloso da sua família, Hugo era pai, marido, amante. Para Ida não havia homem no mundo mais bonito, mais forte nem mais carinhoso. Iria com ele onde o mundo acaba e muito mais longe se assim ele o desejasse.

"L'amore è piu bello".

Neste ambiente de pobreza feliz veio ao mundo numa clara manhã de primavera Líbero, cedo cedo Lili. Lili me soa melódico e só com muito esforço aceito Líbero, aquele que deve ser LIVRE, um grito solto sem eco lançado por Hugo contra toda a opressão.

Um filho a mais, mais um elo na ligação. Hoje nós descendentes de italianos sabemos o quanto representa a família para este povo de espírito vibrante que vive a vida tão galantemente quanto é amante carinhoso, quanto saboreia um belo prato de macarrão com um copo de vinho tinto seco. Sabemos o quanto se dedicam à família e quanto a família representa para eles, ainda mais a família com filhos e no início do século!

O que meu pai me passou foi a união em família, pai, mãe, irmãos num só anseio pelo bem comum, amizade fraterna, necessidade de contato, de conversar um com o outro, de se ver, de se auxiliar nos problemas materiais e existenciais.

Sempre juntos à mesa durante as refeições, tínhamo-nos em presença ali, um em frente do outro e as mágoas que porventura tivéssemos iam com o convívio, ao saborearmos um belo café com pão e manteiga, ou diante de um saboroso inhoque com molho de tomate e queijo parmesão. Não havia mágoa que resistia a uma abertura como esta, como não há músico que resista a uma sinfonia de Beethoven, por mais brigado que esteja com a vida.

Italianos, doces italianos, a família em primeiro lugar!

Quando Líbero nasceu, Hugo estava jogando futebol, seu esporte predileto. Chamado às pressas, chegou em casa com o choro estridente do garotão que nascia. Do lado de fora deu um pulo como se estivesse a pegar um petardo e gritou: "Hellá, é un maschio!" e entrou firme dentro da casa, suado e ofegante, abraçando a todos e recebendo felicitações. Parou diante de Ida e do bebezinho que estava sendo limpo e embrulhado pela parteira, e com os olhos em lágrimas que se misturavam ao suor, exclamou: "Libero... Amore, questo será LI BE RO".

Mandou buscar uma garrafa de vinho e saudou junto com os amigos a chegada de Líbero naquele ensolarado domingo de outubro de 1908.

1 Comments:

  • At 10:01 PM, Anonymous Anonymous said…

    Alex, estou adorando o livro, é pena que parou aqui, no Líbero, aliás meu papai. A linguagem é muito rica e sensível.Fiquei sabendo que você quer transformar o blog em livro, mas ele não foi feito em cima do livro "Saga" de seu irmão? agora não entendi mais nada. Você está transcrevendo o livro Saga, você está se inspirando nele, você está completando-o ou nenhuma das alternativas acima? Beijos, continue que estou curiosa pra ver o resto da história dos Saporetti.

     

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