FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, March 19, 2007

36 - 1943: Morrem Hugo e Emílio - Meus Avós

Américo Saporetti Filho

Hugo no final da vida


Emílio, já idoso, com os netos, alegria de sua velhice (possivelmente Diana, Bebé e Toninho)

No carnaval de quarenta e três, Hugo não pode farrear. Seu pandeiro ficou dependurado atrás da porta do quarto. Uma dor muito forte por toda a barriga e quadris o incomodava. De algum tempo para aquele , o seu semblante era quase sempre de dor, mesclado por alguns desvios de alegria, pois quem durante toda a vida viveu em euforia com o mundo, não perde o cacoete porque dores fortes e constantes vêm atrapalhar o bom humor. Mas aquele carnaval já o encontrou com dores contínuas e, talvez, salvo melhor avaliação, tenha sido este o primeiro carnaval sem Hugo pelas ruas de Ponte Nova.

Na mesma época o velho coronel Emílio, trazendo nos olhos, no andar e no rosto as marcas das decepções, fora acometido de crise cardíaca debelada com sucesso, pois atendido a tempo e submetido a sangrias salvadoras.

No ar, prenúncios de que o ano da graça de mil novecentos e quarenta e tres, do meu primeiro ano de vida, não seria dos mais auspiciosos. Nuvens negras da desgraça pairavam sobre as famílias Saporetti e Garavini, e a indesejada das gentes estava de objetivo fixo: queria levar hugo e Emílio. E não deixaria por menos. O primeiro, Hugo, a 28 de abril e o segundo, Emílio, a 20 de novembro, com quase sete (que número mais cabalístico?) meses de diferença, e me deixou órfão dos avós que, na tenra idade, sem saber de nada, eu tanto prezava.

Mas vamos aos fatos.

Não demorou muito para que os médicos de Ponte Nova sugerissem que Hugo deveria tratar-se no Rio de Janeiro, e tudo indicava que deveria ser operado. Já em abril Hugo parte de Ponte Nova para a Capital Federal. Num banco de trem de ferro -Maria Fumaça- aguentou firme dia e tanto de viagem. Ao seu lado, o doutor Innocêncio, que chique, agora doutor, seu primeiro neto, recém-chegado da campanha da Itália, onde servira no corpo médico da FEB, a mulher Ida, firme como uma pilastra, e o filho Líbero, o que nascera para ser livre. Esperava-os na Capital Federal o filho caçula Nello.

Hugo, com olhar matreiro, encarava tudo com humor. Não podia perder esta oportunidade, e brincando com aquele sotaque tão bonito:_'Precisa de tanta gente para me levar para o matadouro?'_ tropeçou no "matadouro" e, debaixo do riso de todos, resolveu trocá-lo por "lugar onde se esgoelam os bois."

Innocêncio explicou:_'Hugo, os médicos de Ponte Nova, e estou também de acordo com eles, acham que você terá que se submeter a uma operação delicada, só no Rio é possível fazê-la com segurança.'

Ele bateu nas costas do neto, sorriu, fez um muxoxo e riu um sorriso enigmático.

A dor vinha, e agora estava voltando a espaços cada vez menores, ele se curvava, um lenço na boca para não gritar, e sofria. O neto médico aplicava injeções e remédios, tentando aplacar os espasmos dolorosos. O sofrimento de Hugo fazia todos sofrerem, e a cada acesso de dor era como se todos estivessem martirizados, os olhos se enchiam de lágrimas que desciam pelas faces vincadas e lisas.

O trem parava na estação e só quem viajou de Ponte Nova ao Rio de Maria Fumaça sabe em quantas estações o trem para ao longo do longo percurso. Era só o trem parar nos trilhos com aquele seu barulho estridente de metal com metal, e vovô já de pé não titubeava:_'Vamos tomar una cervejina?'

E ia, como um mineiro, acompanhado ou não. Gostava de cerveja -cervejina- como gostava de vinho, de carnaval, do PFC, das famílias, e das 'creolinas'. Provavelmente ele gostasse tanto também de uma bela macarronada feita pela moglie, de um torresmo bem oleoso, de uma linguicinha curtida no calor do fogão, e de queijo. Sei que sim, posso colocar sem medo. E de pão molhado no vinho, delícia de sua vida.

Mas as cervejinhas desta viagem eram bebidas com avidez, com pressentimento de derradeiras.
No Rio, Hugo foi operado. Os cirurgiões constataram câncer na próstata em estado tão avançado que não havia o que fazer. Foi abrir para ver, constatar e fechar. Veredito médico:_'Não há solução. Caso perdido. Pouco tempo de vida. Não podemos garantir que resistirá à viagem de volta.'

Como os médicos conseguem ser tão lacônicos! A nós leigos, parece até insensibilidade. Pensem só em vó Ida, em Lili, em Nello e até mesmo em Innocêncio, recebendo de chofre aquelas frases acima que significavam o fim de Hugo. A partir daquelas frases Hugo passava a não existir palpável entre nós. _'Só um milagre.'_ e os médicos saem de cena, entregando para Deus o que acontecer dali para a frente.

Para voltar a Ponte Nova foi necessário arranjar um vagão especial com acomodações que permitissem a Hugo viajar deitado. 'Talvez não resistisse à volta' martelava a cabeça de todos. O grande Hugo estava no fim.

Tio Nello conseguiu com Arnaud Barbosa que na composição fosse atracado um vagão com acomodações especiais, e assim deitado quem só sabia ficar de pé, voltou Hugo a Ponte Nova debaixo de fortes dores, que eram acalmadas com cada vez mais violentas doses de morfina.
_'Sabe quantas injeções você me aplicou do Rio até aqui?'_ perguntou ao neto quando chegaram. Innocêncio não tinha a mínima idéia _'Setenta'_ e completou _'que tal fazermos uma fèzinha no bicho...'_ ainda pulsava naquele corpinho tornado tão frágil um gostinho pela vida que lhe escapava de maneira tão dramática.

Chegaram a Ponte Nova a 27 de abril. Na estação uma multidão silenciosa aguardava o herói do Pontenovense, o lutador pela causa dos operários, o anarquista, o bicheiro, enfim o alegre vagabundo, o homem do povo.

Hugo já não podia falar muito e ria com dificuldade, e mantinha nas mãos chumaços de pano, que enterrava entre os dentes e mordia com toda a força que lhe restava, sempre que acessos de dor lhe ocupavam as entranhas, aplacando assim os gritos que não queriam dar.

Num quartinho preparado na casa de Beatriz e Eduardo, situada na volta do rio, na rua Marcos Jardim, passou de 27 para 28 e como um cisquinho de gente, encolhido pelas dores e magro por não comer morreu irreconhecível o meu Hugo, avô. Dia negro, 28, abril, 1943.

Para ele não interessava e nem era importante ser ou não o fundador do PFC. O importante era que o Pontenovense existia e assim ele podia lutar para mantê-lo e torná-lo cada vez maior e mais valoroso.

O enterro de Hugo teve honras e a participação da cidade. Hoje ele é nome de rua no bairro do Guarapiranga.

Será que a Hugo isto interessa? Os operários continuam a vender seu trabalho por preços vis, e continuam miseráveis; a injustiça social campeia por toda a parte. E o mundo de hoje não andou um centímetro sequer (e há quem suponha que até tenha regredido) em relação ao tempo de Hugo no caminho do bem estar e da justiça social. Tenho a impressão de que Hugo não está satisfeito, onde esteja, com o rumo da Humanidade, mas também tenho a certeza de que mantém a esperança de que a rota seja mudada para melhor.

De um momento para o outro, o quarto preparado para receber Hugo na doença, após sua morte, foi ràpidamente transformado em ateliê de costura. Como é fácil aos vivos transformar as aparências externas! Um viajante que passasse por aquela casa da rua Marcos Jardim na volta do rio por volta do dia 29 de abril de 1943 encontraria tudo normal, numa aparente tranquilidade. É muito fácil mesmo aos vivos livrar-se, em aparência, dos seus mortos.

No outro quarto de hóspede da casa grande, vovô Emílio, triste, lia seus livros e dormia suas noites numa aposentadoria lenta para um homem que sempre foi ativo, vigoroso, dinâmico.
Aquele ar de tristeza intuia alguma desgraça prestes a acontecer. Aos domingos a família reunia-se para a macarronada regada a vinho. Emílio mantinha-se triste, não mais dançava as músicas italianas, só os netos lhe davam algum prazer e ainda lhe arrancavam algum sorriso de alegria. A 19 de novembro, comemorou de maneira muito íntima, assim mesmo quase que por imposição da família, os seus setenta e seis anos de vida. Não quis bolo, mas não pode impedir que todos em coro cantassem o 'parabéns pra você' e que o abraçassem com amor e lhe desejassem muitos anos de vida, e que comessem alguns docinhos em sua homenagem. Nem pode impedir a alegria de todos. Queriam contagiá-lo para que levantasse a cabeça e voltasse a ser o coronel Emílio que todos admiravam.

Vovô aceitou tudo com paciência, e antes da festa acabar, pediu licença e recolheu-se ao quarto.
Por várias vezes invadi seu quarto como só as criancinhas sabem fazer tão bem, e encontrei-o vendo fotos, lendo cartas, sentado na cama de solitário. Chamava-me e mostrava:_"Aqui está a Itália, a bota da Europa, e aqui este pontinho é Bologna, onde vovô nasceu e viveu antes de vir para o Brasil. Lá, quando tinha pouco mais que sua idade, corria campos e cavalgava cavalos. Nem me passava pela cabeça vir para o 'Brasile'.

Já grandinho, pouco tempo após receber meu diploma de mecânico pelo 'Arsenal Militar de Bologna', pus-me ao mar com a cara e a coragem e vim dar aqui neste país maravilhoso. Depois de ficar em algumas cidades vim para Ponte Nova e daqui não mais saí. Fui muito feliz, este lugar é lindo, minha família é bela e unida, mas como não podia deixar de ser, tive também muitas e imensas decepções. Agora me resta viver de recordar e de colocar a vida a limpo. Tenho pouco tempo, netinho."

Eu não ficava quieto enquanto ele desabafava. Subia na cama, pegava seu chapéu, que ficava sobre o criado mudo, e colocava-o na cabeça, e ria de satisfação olhando o vô. Depois tirava o chapéu e jogava-o no chão. Quando ia pisar nele, o vô, como um gato, apanhava-o, e meu pèzinho batia firme no chão de tábuas, fazendo um barulhinho oco. Não gostava, chorava e sapateava. Ele então, bondoso, me dava uma de suas bengalas. Eu corria com ela, e ele dizia entre os dentes, se repetindo sempre:_'Brotolóstia...'

E continuava com suas confidências para mim criança:_"Cheguei em Ponte Nova no fim do século passado -1890- por aí. Vim para trabalhar para o Innocêncio, que se casaria com minha irmã Emma, e ele então passaria a ser meu cunhado. Tínhamos um objetivo: montar a expansão da Usina Anna Florência. Para isto instalamos a oficina mecânica que hoje é a 'Oficina Mecânica e Fundição Progresso."

Ali vivi minha vida e formei os melhores mecânicos da região, assim como consegui realizar grandes obras de engenharia mecânica. Isso me dá muito prazer, pois profissionalmente não vivi em vão. Já minha vida amorosa é um pouco tumultuada. Me casei duas vezes e minhas esposas morreram de parto sem me dar um filho. Me casei a terceira vez com uma menina quinze anos mais nova com quem tive minha primogênita, sua tia Beatriz. E com ela tive uma grande família. Eu a adorava, mas ela não correspondia. Eu talvez fosse seu pai, ou protetor, e na sua cabecinha começaram a surgir outros homens e aventuras. Fui feliz com ela até que o virus do adultério entrou pelo seu corpo adentro como uma peste.

Tive então minha vida quase perdida. Fase brutal que Deus me obrigou a viver, mas que também me deu força e vitalidade para sobreviver."

Vovô parecia que chorava, e alheio a tudo, nem ligava para o que eu estivesse fazendo.
Sentado no chão, a bengala deixada de lado, eu tirara a gaveta do criado e jogara e espalhara para todos os lados papéis, remédios, óculos, relógio, e brincava absorto e satisfeito com o brilho magnetizante do ouro maciço da corrente que segura o relógio ao bolso do casaco - como era elegante o meu avô! - não sabia ainda o que era ouro, nem o que era relógio, e nem sequer sonhava com o que poderia significar uma libra esterlina, aquela libra de ouro que encimava a corrente.

Vovô chamou a filha:_'Ginette, venha cá que este seu filho me põe louco...'

Mamãe chegou, me repreendeu e arranjou a bagunça que eu fizera. Aida, minha irmã, ainda de colo, ocupava o braço esquerdo, enquanto com o outro ela me pegou aos safanões e ia me levando embora, Vovô protestou veementemente:_'Deixe-o aqui. Quando precisar de você eu chamo. Gosto de conversar com este pequeno Brotolóstia.'

Mamãe saiu e ele continuou:_"Sabe, netinho, nesta vida vovô teve um apoio mestre da sua querida irmã, a saudosa Emma, vó do Innocêncio, seu primo, agora médico. Sem ela eu já teria entregado os pontos há muito tempo, e hoje seria pó, e ninguém mais se lembraria de mim. Mas ela sempre ao meu lado me deu a força que precisei, me apoiou quando era necessário, e foi com ela que tive os grandes diálogos que me levaram a tomar as mais certas decisões de minha vida. Minha querida Emma merece toda esta saudade que sinto por ela. Quando encontrei sua vó, a Portuguesa, contra todos, Emma me fez ver que estava certo e realmente tive com sua vó uma relação muito tranquila, saudável e honesta. E para cumular a ligação, tivemos sua mãe, que é uma pérola de pessoa e a grande alegria da minha vida. E Ginette me deu você, um netinho travesso, ativo e saudável, para quem estou falando, apesar de saber que você não tem condições de me ouvir desabafando. É melhor falar a você do que me dirigir às paredes, não quero ter a sensação de estar ficando louco. Quem sabe você não está me ouvindo... só o futuro dirá..."

Parou de falar e deitou-se. Fui até ele e acariciei os seus cabelos brancos e puxei-lhe os bigodes. Gostava que eu o tratasse assim de um modo meio desconcertante, em que não podia prever a próxima cena. A luz da tarde, ainda forte, penetrava pela janela entreaberta, dando ao quarto uma luminosidade transparente de claro e escuro que ofusca, ao mesmo tempo que alegra. Subi na cama e deitei-me ao seu lado -era um grande prazer ficar deitado ao lado do vô- Ele me segurou com suas mãos gigantes e seus punhos fortes. Me retorci, gritei, chorei, ele cedeu um pouco, soltei-me e saí a correr xingando-o daqueles nomes que toda criancinha xinga mal pronunciadas e sem sentido certo, mas que não deixa de ser uma defesa, antes de qualquer outra coisa.

Riu abundantemente:_'Este me saiu melhor que encomenda.' Virou para o lado contrário e tentou dormir.

A história de vovô Emílio estava pelo meio. Não consegui ouvir o resto e nem me contou. Brincava ainda no quarto quando foi uma correria dos diabos, e me arrancaram de lá. Ainda pude ver vovô arfante, um homem estranho chegar como uma maletinha, e meus ouvidos virgens ouviram pela primeira vez palavras como Sangria, Enfarte e Morte. Continuei brincando fora do quarto do vovô, e não me lembro de mais nada.

Dias mais tarde voltamos lá, e não encontrei mais vovô em seu quarto, nem bengala encastoada, nem relógio com corrente de ouro encimada com libra esterlina, nem óculos, nem cama, nem criado, nem guarda-roupa. Aprontei um berreiro, queria vovô. Me acalmaram dizendo que tinha ido fazer uma grande viagem, tinha ido para o céu. Então era por isso que ele estava tão triste por deixar tantos amigos e fazer, na idade dele, nova imigração, mesmo que fosse para este lugar tão bonito que os maiores chamam de céu? E matutei comigo: Se é tão bom assim, por que vovô não me levou com ele?

Saudades sem fim para Hugo e Emílio. A saga destes italianos serve de exemplo. Seus exemplos são os céus que nós carregamos enquanto vivermos. Ou eternamente, se Deus não fizer objeção.

Sunday, March 18, 2007

35 - Segunda Guerra Mundial: Brasil na Folia da Guerra

Américo Saporetti Filho

Por esta época Getúlio resolveu entrar na guerra de Hitler e Mussolini. Não me explicaram convincentemente até hoje o que o Brasil foi fazer no conflito mundial. Dizem que submarinos de Hitler vieram às costas do nordeste brasileiro e andaram fazendo misérias, afundando nossos navios, e pondo em risco nossa integridade como país. Muitos colocam em cheque esta versão getuliana, mas a verdade é que fomos para a Itália com a nossa Força Expedicionária Brasileira, e levamos muitos jovens pracinhas para lutas inglórias, por ideais que ninguém daqui sabia quais eram realmente, e envolvemos estes nossos irmãos em torrentes de euforias demagógicas. O cemitério de Pistóia, pleno de cruzes brancas em fundo verde de grama, encimado pelo céu azul, guardou por muito tempo os corpos dos nossos pracinhas. Famílias e mais famílias choraram pelo Brasil afora suas mortes. Há também os que voltaram neuróticos e imprestáveis e os mutilados. Bem, preferiria passar ao largo deste fato tanto histórica quanto individualmente, mas não me é possível, pelas implicações que quase mudam o curso da história que estou tentando contar.

Pois é, certo ou errado, Getúlio, o todo poderoso ditador brasileiro, declarou guerra ao Eixo, e mandou para a Itália, dentro de um clima de total oba-oba, os expedicionários. Como não podia deixar de ser, deitou falação pelas rádios e pediu que outras pessoas de influência também assim o fizessem para extirpar do mundo o cancro do Fascismo e do Nazismo.


Criou-se dentro do país uma atmosfera belicista e um ambiente de guerra. Nas rádios, além dos inflamados discursos, as marchas marciais.

Tudo isso contra quem? Contra os italianos, os alemães e os japoneses. A população da pequenina Ponte Nova começou devagar a sentir os efeitos deste clima adverso aos estrangeiros imigrantes, considerados culpados pela guerra e por tudo que estava acontecendo. A perseguição, a queima dos bens, prisões arbitrárias e até linchamento já estavam acontecendo pelo Brasil afora, contra as colônias indefesas dos imigrantes.

De hora para outra, como um rojão, sem que se precisasse o exato momento do início, Ponte Nova entrou coletivamente na obsessão de se fazer justiça contra os inimigos das populações ordeiras do mundo. De pequenas desavenças, o furor foi num crescendo contra os pobres dos imigrantes até a tentativa da sua exterminação total se não fosse a ação pronta de um Homem.
Contaremos a quase tragédia. Num domingo depois da missa, a população enlouqueceu de um momento para o outro, e saiu à procura dos estrangeiros aos gritos de 'Fora os Fascistas', 'Fora os Nazistas', 'Morte aos Estrangeiros', 'Quebra-Quebra-Quebra', 'Lincha' e outros slogans de multidão enfurecida.

A casa de comércio do Mazzeo teve suas portas e sua placa quebradas. Várias vidraças estilhaçadas com pedras certeiras. A polícia fez ouvidos de mercador, olhos de coruja ao sol e pernas de curupira e não apareceu. Simbolicamente o delegado deveria estar representando o general Montgomery, e estrategicamente sem aparecer comandando de longe um ataque às hostes inimigas compostas de trabalhadores, a maioria de idosos, que inadvertidamente imigraram para aquela cidade da Zona da Mata mineira.


Mas, Deus do Céu, como pode a multidão ser tão estúpida, bruta, irracional! Investia contra o amigo, o colega de serviço, contra o professor, contra o técnico de futebol, contra a sogra, contra... contra a Fé, a Esperança, a Caridade.


Por seu lado, atabalhoadamente, os imigrantes fugiram assustados e se esconderam, e se prepararam para o pior. Partetes tomaram a defesa dos seus, e patente estava que se houvesse confronto, seria violento, e de proporções inimagináveis e imponderáveis.

Vovô Emílio manteve sua casa da Praia bem fechada, e proibiu qualquer contato com o mundo exterior aos seus familiares, e se preparou. É claro que tinha pelas imediações, difarçadamente, pessoas da fundição fiéis a ele e capazes de tudo para defendê-lo.


E todos os imigrantes, cada um a seu modo, achou um jeito de se aquartelar e esperar o desenrolar dos sombrios acontecimentos.

Porém não houve a esperada guerra, graças a Deus, que colocou um Homem na frente da turba e conseguiu o impossível de trazê-la à razão, raciocinar com ela, dispersá-la e mandá-la para casa.

A cena aconteceu assim:
Começavam o quebra-quebra da casa do Mazzeo na região central da cidade, bem perto da igreja e ameaçavam invadí-la para acabar com a família de fascistas que moravam ali, quando surge na frente deles, com olhos de fogo e mãos de aço, completamente transtornado, o pequeno e manco Everardo Bráulio. Um ousado tenta detê-lo e é lançado degrau abaixo.

A voz firme de um Hécules sertanejo brada:_'Parem, vocês enlouqueceram? Que pretendem com este absurdo? O primeiro que vier eu acabo com a raça dele!' A turba estacou embasbacada e ele voltou à carga, severo:_'Estão loucos? Não vêem a tolice que irão cometer? Que têm na cabeça, titica de galinha?

A voz firme, farpas certeiras, atingia o povo que ouvia estático e calado. Ouvia-se o arfar dos peitos fortes daqueles pobres coitados influenciados por políticos sem escrúpulos. Continuava Everardo:_'Estes italianos, estes estrangeiros que querem matar... linchar ou tripudiar sobre eles são tão brasileiros quanto vocês, com filhos brasileiros, netos brasileiros, a maioria radicada aqui há mais de vinte, trinta, quarenta anos -a maioria de vocês ainda não era nascida. Estes homens, quando vieram para cá, enfrentaram toda sorte de obstáculos, mas fizeram suas opções de lutar pelo Brasil, de engrandecer o Brasil e tomar este nosso país como Pátria deles também.
Agora dispersem e voltem para suas casas. Não há fascistas nem nazistas entre nós, aqui só há brasileiros.


A guerra é lá fora, vamos deixá-la onde está. Se a trouxermos para cá, vamos nos arrepender amargamente pelo resto das nossas vidas, já tão sacrificadas. Vamos, vamos, dispersem, cada um para seu caminho.'


Everardo foi ouvido. A multidão se individualizara e começara a raciocinar. Um conversava com o outro e a dispersão se tornava realidade. De cima dos degraus da casa Mazzeo, Everardo olhou para o sol do meio dia daquele domingo, e ficou ofuscado de luz, e viu que a paz voltava a reinar. Seu coração batia forte, seu estômago doía forte, tremia da cabeça aos pés, um tremor após tensão, um tremor de relaxamento. Uma cadeira surgiu e ele sentou, um copo d'água apareceu e ele bebeu com avidez. Na mão direita caída, um revolver sem balas. Ali estava um herói que passaria desapercebido. Os jornais da época nenhuma notícia deram ao fato e sòmente a cominicação oral trouxe-o até nós.

Ao 'macuco' Everardo uma salva de palmas deste 'baeta' esmaecido, pela habilidade indomável e heróico destemor que teve, ao domar o estouro da boiada ensandecida, e também pelo senso profundo de justiça com que catalizou e amainou a fúria que envolvia aquele povo simples, trabalhador e humilde, transformando-a, como num passe de mágica, em visão clara da realidade, sem os ranços e esteriótipos da demagogia, tão comuns nestes ambientes de transtornos populares. Soube, este pontenovense de alta visão, limpar a mente da multidão, ofuscada pelo fascínio da guerra, das manchas militares, dos discursos imponentes dos líderes do mal, que nascem e se proliferam como praga nestas épocas, inconsequentes e imaturos.

E assim Everardo entrou nesta história com galhardia pela porta da frente e com todas as honras que se deve a um Homem com agá maiúsculo. Muito obrigado, saudoso rival das contendas esportivas, não sei o que seria dos italianos e dos filhos de italianos, se não fosse a sua atitude.

Everardo, Everardo que eu tenho em minhas retinas no seu andar bamboleante de manco, uma perna maior que a outra, dizem que paralisia infantil, e também com um coçar de traseiro intenso e aflito, para alívio do prurido anal, causado por colônias interminávels de oxiuros.

Everardo, delegado de polícia, e nós tendo que ir à delegacia -comumente chamada de Gavetão- para tirar o Marcus do xilindró, por haver exagerado na bebida no carnaval e causado tumulto. O Everardo convenceu o pai que o melhor era o Marcus ficar lá durante aqueles dias de carnaval, e de fantasia sair no bloco da Quarta-Feira de Cinzas. Maior castigo não havia, pois a cidade em peso ficava no aguardo deste bloco, com foguetório e gozações mil. Me lembro muito do Everardo da 'Padaria das Famílias', pãezinhos quentes e torrados da minha infância.

Ali, nos fundos, passei noites vendo a farinha ser amassada, o pão ser conformado e colocado no forno. Noites saudosas da minha adolescência. Poderia me alongar aqui em traçar e esmiuçar o perfil de Everardo, que na certa não conseguiria. E que também não é nosso objetivo.

Para terminar gostaria de ressaltar, usando padrões de dignidade que são meus, que com este ato Everardo ganhou o direito de ter nascido, vivido e de ser lembrado sempre , sejam quais tenham sido suas pequenas fraquezas e desmazelos, que todos nós temos ao longo de tanta vida.
Depois deste incidente tão desagradável, os italianos, a colônia, mantiveram-se reservadíssimos para evitar novas explosões de intolerância por parte dos 'brasiliani'. Não queriam acirrar ânimos nem criar ambientes mais irrespiráveis.

A guerra aproximava-se do final. Hitler sòzinho lutava desesperadamente. Era questão de tempo, aguardar mais um pouco, e este ambiente tão estranho seria extirpado da face global da terra.

Para fazer frente às despesas com a entrada do Brasil na guerra, o governo confiscou o dinheiro dos estrangeiros nas contas em banco. Vovô Emílio ficou muito abatido com esta decisão arbitrária e caiu em depressão.Na administração da fundição na época estava o Juca Fonseca, em substituição ao pai Alexandre. Juca acalmou Emílio, dizendo que reporia aquele dinheiro e que mantivesse a calma. Foi só uma tática diplomática de trazer ânimo àquele velho imigrante, pois ele, Juca, não tinha nenhuma obrigação de solucionar as arbitrariedades do governo e do mundo.

Mas Ju
ca Fonseca estava armando, não se sabe por que razões ocultas, uma boa para o velho mecânico de tantas lidas e tantas lutas ao lado do seu pai Alexandre Fonseca. Juca, alegando que vovô já era rico o bastante, retirou sua participação nos lucros, trato apalavrado e lavrado pela força de contrato que um fio de bigode podia ter entre vovô e sr. Alexandre, e que, dali para a frente, pretendia dividir a parte que competia ao vovô entre os empregados que precisavam de estímulo e eram a camada mais fraca da escala social.

Demagogia ou visão empresarial? Só sei que vovô amargou esta decisão, e na rudeza de suas expressões, chegou a dizer:_'Meu garoto, por que você não usa a sua parte para fazer este tipo de benefício? è muito confortável ser bondoso, filantropo e amável com o chapéu do outro. Pegue o seu chapéu, menino, e lute por seus ideais, enterrando-o na cabeça ou retirando-o se for preciso.'

A situação entre vovô e Juca agravou-se até que o seu 'patrão' aposentou-o. Emílio nunca perdoou aquele moço mal saído dos cueiros, faltar aos compromissos assumidos por palavra empenhada. Se soubesse disso, reclamava a todo instante, teria comprado a fundição em sociedade com o Alexandre, e não ouvido o saudoso com palavras de que ele entraria com o capital trabalho, e que teria sempre participações nos lucros como se sócio fosse. Coisas de palavra empenhada, que tanto pano para a manga dá em todo o mundo. Aliado aos problemas particulares, ainda havia a guerra na Itália, destroçando as regiões que ele conhecia e amava.

Contam que nos anos que ainda lhe restavam, leu a Enciclopédia Larousse, e que, traçando comparações com as notícias dos jornais, ia identificando, marcando, riscando e fazendo anotações, com visível dor no coração, os locais onde o fantasma da guerra ia destroçando ou limpando da face da terra, e da sua querida Itália, que conhecia tão bem.
Pobre vovô Emílio.

Havia razões de sobra para que aquele italiano forte e corpulento de mais de 70 anos, mas com uma sensibilidade que os anos só fizeram exarcebar, sofresse com tantas decepções, que chegaram aos borbotões, pesadas de serem suportadas, tenazes, cruéis, apertando seu peito, difíceis de aguentar.

Vovô deixou de ir à Fundição, como fez por mais de 40 anos, e raramente passava no Saltarelli para tomar um copo de vinho tinto ou uma cachacinha. O desgosto foi superando seus prazeres e enclausurou-o nos seus últimos anos de vida.

Thursday, March 15, 2007

34 - O Casamento, as Dificuldades, os Problemas, Os primeiros Filhos Que Não Vêm, os Anos de Apreensão.

Américo Saporetti Filho


Foto do casamento de Ginette e Américo com a data escrita na caligrafia dele


_"Recebi um convite do Flamengo para ir jogar no Rio. Que acha disto, Ginette?"_ perguntou eufórico Américo à sua noiva, num domingo de junho de 38.

Algumas semanas atrás o Flamengo jogara em Ponte Nova contra o Pontenovense, e a atuação exemplar do papai aguçara o interesse dos olheiros do clube carioca. Ginette olhou-o, respirou fundo, elevou a cabeça para o céu estrelado, e num fôlego rasgando seu coração, como se numa frase pudesse ir junto seu futuro, e deu sua opinião: "_Se for eu não irei. Você irá sòzinho e pronto."

Ao que tudo indica seguiu-se um pequeno desentendimento, e a despedida carrancuda e seca do machão. Deve ter dito: 'Vou se quiser, mulher nenhuma me impede e mulher minha tem que me seguir aonde eu for' e coisas do gênero, próprias do gênio colérico daquele filho de italiano.
Para sorte de todos nós, refletiu e não aceitou o convite. Não porque a noiva se opusera, mas porque ele até então jogador de futebol não tinha futuro, e o melhor era continuar trabalhando duro no Centro de Saúde, e cavar com os amigos e políticos influentes um emprego público que lhe desse segurança para o resto da vida. Futebol ele continuaria a praticar enquanto desse no Pontenovense, onde era senhor absoluto da posição.

Quando soube por Américo da sua decisão, Ginette deu graças a Nossa Senhora por tê-la atendido em suas preces. Chorara várias vezes só de pensar em perder aquele amor tão esquentado mas também tão quente.

No meio do ano o casamento foi marcado para 17 de dezembro, sábado, e aniversário de Hugo, 58 anos. Nada melhor que homenagear o grande pai, orgulho de toda a família, casando-se no dia do seu natalício. Ele ficaria muito feliz e ficou.

Começava assim a corrida contra o tempo. Américo tinha tanta coisa para arranjar e Ginette também. Móveis, utensílios, ainda bem aue iria morar na casa de Copacabana, herança de Ginette. O enxoval parecia não ter fim, a cada peça terminada vinham-se juntar várias novas necessárias, antes nunca pensadas. A tudo se somavam a ansiedade e a vibração da data mágica que se aproximava rapidamente.

Hugo sorria seu sorriso e animava o filho com pancadas nas costas: 'Hellá, seja homem.' E o pai Emílio visitava todos os dias a filhinha caçula, e gostava de vere seu enxoval que ela pacientemente lhe mostrava, tirando-o do baú repleto de naftalinas.

Assim correu o tempo dos dois, um tempo cheio de apreensões e totalmente preenchido pelo casamento.

Ginette deixou de ser Filha de Maria, Américo era contra. Mas em casa rezava com fé para a Virgem e fazia suas orações com muita disciplina.Américo já não produzia bem em campo e foi substituido. Hugo técnico, justificou a saida do filho com a observação: "_Após o casamento, com a cabeça no lugar você pode voltar ao time principal. Por enquanto continue treinando para não perder a forma física."

Contra a vontade, foi para a cerca, e o Pontenovense deixou de contar com o grande craque durante os jogos faltantes daquele final de campeonato.

Em outubro, precisamente a 18, Américo foi nomeado para a 2a. Coletoria Estadual de Ponte Nova, com salário de 150 mil réis mensais. Deixou o Centro de Saúde. No serviço público estadual trabalharia até a aposentadoria e glagaria por merecimento os cargos de escrivão e coletor (mais tarde, exator).

"_No meu tempo era diferente." Reunia frequentemente os filhos e alertava-os _"Não era preciso ter estudo para se conseguir bons empregos. Hoje não, hoje quem não tem estudo não é nada, e é por isso que quero que todos vocês estudem até se formarem."

A nomeação dele deveu-se ao prestígio de Prudente Soares, irmão do prefeito Otávio Soares, e por este motivo aliado a uma amizade fraterna, papai lhes foi grato por toda a vida.

Mas esta gratidão ficou meio abalada quando o jovem, com casamento marcado e inumeras obrigações que envolviam pagamento, não via a cor do dinheiro estadual. Prudente, seu padrinho, pedia-lhe paciÇencia, que não se exaltasse nem cometesse alguma burrada. "_Com o governo deve-se ter calma, não adianta ficar brabo e perder o tirocínio."_ argumentava.
Para sobreviver, que é preciso sobreviver, papai começou a engordar porcos, e para isto investiu suas parcas economias e teve de reduzir ao mínimo seus gastos pessoais. Foi um período de muitas dificuldades, mas graças a Deus superado com firmeza , esperança, luta e decisão.

O dinheiro do governo só chegou, ou melhor, começou a chegar, nove meses depois de papai estar na coletoria, e sete meses depois de casado, quando o desespero já atingia aquele espírito batalhador em vias de mandar às favas o emprego público. Quem o animou e ajudou nesta fase e em todas as outras dificuldades por vir foi... quem foi?... a sua jovem esposa, minha querida mãe, que se desdobrava nos trabalhos da casa, costurava e fazia quitutes para vender: linguiças, copas, salgadinhos e outros petiscos. Mas voltemos um pouco, é preciso casá-los antes.
Seja feito o casamento.

Foi uma cerimônia simples, no religioso primeiro, e após o civil. Como sempre aconteceu com os filhos de Hugo Saporetti, os padres relutavam em casá-los na Igreja e ministrá-los o sacramento do matrimônio. E eles só se submetiam a esta cerimônia em consideração às suas noivas religiosas, devotas e tementes a Deus. Não me consta que papai tenha confessado e comungado durante o seu casamento, mamãe sim, o fez com muita devoção.

Casamento na igreja matriz, e em seguida na casa de vovô Emílio, o oficial da justiça com aquele livrão de não sei quantas folhas, todas numeradas e assinadas, fez o assento do casamento legal de Américo e Ginette, recebendo suas assinaturas, as assinaturas dos padrinhos e de vários amigos - testemunhas do evento. A partir daquele momento estavam unidos perante Deus e perante a lei por toda a vida. Assim previram e assim foi feito.

A festa, só para os íntimos, foi na casa da praia do coronel Emílio. Muita música italiana, muita comida, vinho e alegria. Dali da praia, de madrugada, os noivos recém-casados rumaram para a casa de Copacabana, e começaram, ao romper do dia 18, a vida em comum -sem lua de mel, não havia dinheiro para tal- que seria cheia de sacrifícios, e também lhes traria muitas alegrias e compensações.

Estava assim selada a união que me traria ao mundo em 1942.

Cada um de nós está predestinado a nascer, tal é a quantidade de situações envolvidas que culminam com a presença de uma nova concepção? Ou de maneira simplista, tudo acontece sem forma predeterminada, e os fatos vão sendo vividos ininterruptamente pelos estados de espírito dos componentes da situação, sem forma calculada ou sabida? Não, perdoem-me, não me cabe analisar estas questões.

De 38 a 41 mamãe engravidou tres vezes e perdeu-os todos. Crianças malformadas, natimortas, que vinham à luz em estado de completa mumificação, obrigaram mamãe e papai a se submeterem a rigoroso tratamento com o médico italiano Dr. Pedro Palermo contra sífilis, que era o mal da época, à base de bismuto.

Mamãe não se deixou abater com a perda dos filhos, e submeteu-se ao tratamento com a esperança de salvação. A cada nova gravidez trabalhava mais no enxoval, que a cada decepção se tornava maior, com peças mais trabalhadas, com bordados mais singelos, como se fossem cânticos à perfeição para gerar um filho sadio.

Foi difícil convencer papai de que ele também devia tratar-se contra o mal. Achava-se sadio e colocava em cheque que pudesse haver contraído esta doença, apesar de mulherengo que foi. "Sempre soube escolher as mulheres que tive, e na família não há nenhum caso desta doença."
Julgava que mamãe a recebere por hereditariedade da sua mãe, a Portuguesa. Desta forma a cura do casal só se consumou após o terceiro parto fracassado, quando ele resolveu submeter-se ao tratamento ("Para desencargo de consciência").

Assim, em outubro ou novembro de 41, se as leis da genética sáo seguras e confiáveis, fui concebido, vindo a nascer em julho de 42.

Não posso dizer da alegria de papai e mamâe, quando me viram e ouviram chorar -tiveram três filhos que não choraram ao nascer, nem nunca- nas mãos da parteira, batendo os bracinhos, e tentando espernear, com a perninhas presas. Todos podem compreender que a alegria deles não foi simples alegria, foi explosão de euforia, pois antes de mim tres filhos nasceram inermes, pretos e mortos.

Assim começou minha vida, sob o signo da alegria, e ao mesmo tempo a minha responsabilidade, pois era o melhor de todos -para os meus pais ao menos. _"Um Saporetti."_dizia papai, todo orgulhoso_"Este será Américo Saporetti Filho, meu continuador."_ainda mais orgulhoso concluia.

Saiu naquele vinte e tres de julho (Nasci às cinco da manhã, quando o galo cantava, e o sol iniciava sua caminhada pelo dia, no alvorecer) logo de manhã a espalhar a notícia. Era pai de um robusto garoto, um Saporetti. Em pouco tempo a cidade inteira sabia, e todos os amigos e parentes foram a Copacabana, ver o filho do Américo e tomar uma cachacinha ou um cafèzinho com bolinho de comemoração. Eu, no meu bercinho, dormindo o sono dos recém-nascidos, fui admirado e olhado pela Ponte Nova, ainda uma grande família, a cidade que eu, dali a uns anos, palmilharia de ponta a ponta.

Os parentes ficaram lá e se revezaram nas ajudas. Vovô Emílio e vovô Hugo, sentados, comentavam as coincidências das uniões das famílias Garavine e Saporetti, que tantos frutos estavam dando com Eduardo e Beatriz, Santo e Linda, e agora prometia com Américo e GInette. E também comentavam coisas da Itália e recordavam fatos antigos das suas vidas de imigrantes.
Nasci muito amado, e sinto até hoje o fluido deste grande amor que me impulsiona para o mundo. Nasci depois de muito sacrifício, sofrimento, e de muita apreensão, o que me tornou racional e disposto a viver e vencer os problemas com coragem. Enfim, nasci para encarar o mundo de frente , e é o que faço, se bem ou mal até hoje, com a graça de ter tido um pai com Américo e uma mãe como Ginette.

Tuesday, March 13, 2007

33- Emílio Reconhece a Filha

Américo Saporetti Filho

Em 1938, o já velho coronel Emílio, ainda chefe da Oficina Mechanica e Fundição Progresso, resolve em vida dividir a herança entre os filhos: um punhado de casas construidas com sacrifícios e outras adquiridas ao longo de mais de 40 anos de trabalho árduo e dedicação integral a Ponte Nova.

Confidente do pai, o grande Toni Garavini alertou-o para a urgência de reconhecer Ginette como filha legítima, ainda mais agora que ela estava prestes a se casar com Américo. Abriu os olhos do pai para a presteza deste ato, assim regularizando a situação da filha e dando a ela seu nome, coroando com final feliz uma vida até então de constrangimento e traumas. E se ele morresse de um momento para o outro? Já não estava tão novo, idade não lhe faltava e ia além dos setenta.
Assim, em abril de 38, no cartório do sobrinho Cintinho, usando das atribuições que a lei lhe conferia, o forte velho Emílio Garavini declarou e reconheceu em escritura legal que Ginette da Assumpção de Jesus é sua filha e que passaria a assinar daí por diante o seu sobrenome, Ginette da Assumpção Garavini. Estava desta forma caracterizada legalmente a origem daquela bela, airosa moça da sociedade pontenovense.


Tio Toni, seu padrinho, foi quem lhe entregou uma cópia assinada da certidão de reconhecimento. Ginette abraçou-o demoradamente, os olhos cheios de lágrimas. Ninguém desconhecia que Ginette era filha de Emílio, e o pai sempre deu toda assistência e apoio a ela e sua mãe, isto lá é verdade, mas no caso um documento assinado pelo Emílio afirmando tudo, parecia que o sol brilhou com intensidade de uma hora para outra dentro do corpo daquela moça sofrida. À noite numa reunião íntima em casa de Toni e Zefina, o Patriarca anunciou a todos da família o fato ressaltando para que todos ouvissem bem, que agora legalmente Ginette era irmã de todos eles, com os mesmos direitos. Uns esboçaram sorrisos de satisfação, enquanto outros emburraram em desaprovação.

Abraçou demoradamente a filha, e percorreu com os olhos as fisionomias dos outros filhos, e pode ver nelas alegria, decepção, angústia e mistos de sentimentos. Alegria mesmo e entusiasmo só nos rostos de Toni e Zefina.

Dias mais tarde fez a divisão dos seus bens, seu último ato, agora poderia morrer tranquilo. Casas para o Toni, casas para o Emilédio, casas para a Beatriz, casas para o Reinaldo. Também para a Ginette, uma casa grande e dez casas pequenas unidas e ligadas à grande no bairro de Copacabana. Ginette com sua mãe já moravam na casa grande. Com a soma do aluguel das casinhas, mamãe e vó Portuguesa poderiam dali para a frente viver modestamente. Mas Ginette tinha outros planos para a sua vida. Estava apaixonada pelo cunhado da irmã Beatriz, e já se falava em casamento para o fim do ano.

Tanto que em maio deixou o ateliê de dona Alice ainda crua em corte e costura, e começou a dedicar-se toda inteirinha ao seu enxoval. E foi ele que distraiu a sua existência de moça recém-chegada à formação, e foi ele que lhe deu satisfação e prazer naqueles seis meses que antecediam seu casamento, marcado para dezembro.

Emílio, agora legalmente pai, a ajudou em tudo e a paparicou como um avô à neta mais nova. Ginette gostava disso tudo, do casamento que se aproximava e do pai, agora realmente seu, sem subterfúgios. Por várias vezes perdia-se em divagações e sentia um vazio a assinar seu novo nome, Ginette Garavini, e pensava no nome que breve teria, Ginette Garavini Saporetti.

Muitas mudanças num espaço de tempo reduzido, devem ter colocado em parafuso a cabeça daquela filha natural do velho imigrante italiano, Emílio Garavini.

Monday, March 12, 2007

32- Papai e Mamãe, Casamento à Vista

Américo Saporetti Filho


A beleza de Ginette...

e a juventude de Américo...


A vida do quinto filho de Hugo e Ida movimentou-se muito desde o Propedêutico. Espírito ativo e empreendedor, apesar da pouca instrução, ainda jovem foi admitido como atendente no Centro de Saúde de Ponte Nova. Isto depois de vender muito frango, verdura e ovos para a mãe quando menino de calças curtas e de acompanhar o pai pelas bibocas da cidade oferecendo a sorte através do jogo do bicho que Hugo bancava.


Américo instintivamente, e por sensibilidade, tinha consciência de que a vida não podia ser vivida tocando flauta no vai da valsa, e que eram mister lutar para elevar a condição, e deixar os filhos que teria, um passo acima na escada da melhoria social. Não quero com isto dizer que desprezasse os prazeres, lá isso nunca.

Ardoroso jogador do Pontenovense, desde cedo vestiu a camisa de 'center forward' daquele clube fundado e mantido vivo respirando sadio pelo seu pai. Exímio pescador nas barrancas do rio Piranga, de onde tirou belas piabas brancas e vermelhas, piabanhas, surubins, lambaris, corvinas, bagres, cascudos, mais tarde adorou a caçada de pio ao macuco e ao jaó, e também a emocionante caça ao veado. A vibração era tão grande que todo ano realizava com outros apaixonados a 'Caçada Grande', e por quinze dias, se embrenhavam pelas matas do Brasil, caçando e pescando. Papai também participava, com seu espírito brincalhão, dos blocos de carnaval, coqueluche da sua juventude, e que davam à festa de Momo um colorido especial e bem típico.

Namorava muito, era festeiro e gostava de bebericar uns copos de vinho assim também como deitar frequentemente com mulher dama.

Sim, ele gostava de tudo isso, era um cara normal para sua época, mas como dizia, não descuidava de suas obrigações, e bem cedo, utilizando-se do decreto federal 20/70, começou a Faculdade Livre de Pharmacia e Odontologia, que não terminou, mas que lhe deu conhecimentos para desempenhar com desembaraço e eficiência suas funções no Centro de Saúde. Sua disposição, dedicação e interesse fizeram dele querido dos médicos e da população humilde da cidade que ele sempre dedicou especial atenção.

De gênio forte e intransigente, radical em seus princípios, mantinha acordados no coração desaforos recebidos. Revidava sempre qualquer ofensa, e não deixava passar em branco mágoas que lhe causassem.

Meu pai cresceu e maturou seu espírito em Ponte Nova vendo injustiças, recebendo-as e debatendo, querendo mudar o mundo, ao menos à sua volta.

Seu amigo inseparável de boemia e de serestas era o Antônio Lopes, apelido Antônio Pezinho, pelo tamanho descomunal do pé, que por ironia do destino ou de alguma força que não entendemos, teve, no fim da vida, uma doença nas pernas que obrigou os médicos a lhe amputarem os pés. Será que ele maldisse pela vida os pezões que Deus lhe deu? Vá lá saber...
A voz de Antônio Pèzinho era bela, maviosa, seresteira, e coadunava com as noites de lua. Com esta voz como fundo, papai derretia debaixo das janelas das eleitas ou pretendidas, os corações das mocinhas casadoiras.

Namorou firme a Odila Clímaco, e durante muito tempo, nós pequenos, mamãe brincava conosco, mostrando a Odila, baixa e gorda, traseiro de tanajura, a rebolar aos trancos: _'Olhem lá quem era para ser mãe de vocês!'_ e dessa forma espicaçava o pai. Nós reclamávamos. Nosso amor pela mãe era intransferível e não podíamos nem pensar em outra mãe. E nossa santa ingenuidade não permitia decifrar o sentido das farpas dirigidas por mamãe ao papai. E os mais novos choravam só de pensar.

Desculpe-nos Odila. Você é muito boa, mas para nós foi sempre aquela que poderia ter sido nossa mãe, e nós, por unanimidade, não queríamos mudar de mãe. Sei também de outra mocinha na vida de papai: Célia Lopes, irmã do Fiinha, que mais tarde seria um grande amigo do velho e companheiro de caçadas, ou dr. Zé Lopes, como papai gostava de se referir a ele com outras pessoas. O namoro com a Célia foi um namoro às escondidas; a família não fazia gosto, papai e ela enfrentando tudo até que não foi mais possível suportar. Célia, pressionada, cedeu às ordens da família e aceitou o partidão imposto que lhe poderia fazer feliz, com condições de a tomar por esposa de maneira firme e decidida.

O casamento de Célia com alguém imposto pela família fez papai sofrer muito. Ela também sofreu um bocado bom. Como somos cruéis impondo aos que mais amamos certas soluções para suas vidas, que são convenientes para nós! E se alguém nos pergunta, bradamos olhando o céu, como a demosntrar a conivência de Deus. "Fizemos o melhor para..." e desta forma amansamos nossa consciência e damos satisfação aos que nos cercam. Nunca dizemos: "É o melhor para a felicidade deles. Não devo interferir. A vida é deles. Se amam e têm a minha bênção." Nada disso, impomos a nossa vontade sobre a felicidade e a paz dos nossos sem o mínimo respeito pela individualidade. Se hoje ainda é assim na maioria dos casos, pensem em 1936, quando ninguém desrespeitava a vontade dos pais. Assim foi com Célia e papai. Bom para mim, que em virtude disso estou aqui neste mundo que, bem ou mal me dá muito prazer.

Vim a saber que na semana do casamento papai cá de baixo, no Centro de Saúde, e ela lá em cima, morro do cemitério, alpendre da sua casa, trocavam juras de amor por mímicas, juras de amor eterno. Quando tudo estava para se consumar, devolveu o retrato do seu amado com uma frase escrita a pena seca de maneira cuidadosa, só vista virando o retrato de certa forma contra a luz: "Eu te amo."

Nesta época de carência afetiva extrema, papai conheceu a filha bastarda do coronel Emílio, minha querida mãe, que aprendia a costurar no ateliê de dona Alice, esposa do Didico, num casarão ao lado da igreja e perto do Centro de Saúde. Mamãe ia e vinha por ali e já fora notada pelo jovem Américo, mas houve um fato especial que aconteceu pelo destino das coisas para unir os dois.

Um dia uma senhora em prantos interrompeu o serviço de papai para chamá-lo a ser padrinho, pelo amor de Deus, do seu filhinho de meses, bebezinho ainda, que estava desenganado pelos médicos e era pagão. A mãe, pobrezinha e simples, recorria a quem por várias vezes os atendera com tanta educação e presteza no posto de saúde e tomara com carinho o seu filho no colo.
Papai aceitou emocionado, e rápido foi tratar das formalidades com o padre. Surpresa. Levou um susto quando o eclesiástico condicionou o batizado ao pagamento adiantado e foi insensível às observações de que era batizado de urgência, a criança estava às portas da morte, não tinha dinheiro no momento, esperasse até o fim do mes, ele se comprometeria a pagar assim que recebesse, em hipótese nenhuma seria lesado. A conversa já era neste momento uma discussão, e tomara um tom acirrado, de um lado um leigo, e do outro um padre da igreja católica.

O clímax foi atingido quando o padre insultou, numa frasezinha pequena, a pessoa que papai mais amava, e preconceituosamente a colônia italiana: _"Como posso confiar num filho de anarquista e ainda por cima imigrante italiano?" O sangue subiu à cabeça de Américo e ele foi contido por fiéis, quando partia para cima do padre que neste momento rapidinho se enfurnara na sacristia, dando com a maior frieza o assunto por encerrado.

Ginette, que rezava no local (era da congregação das Filhas de Maria), vendo toda a confusão, inteirou-se do problema e prontificou-se a emprestar o dinheiro. Américo aceitou prometendo que pagaria tudo logo que pudesse, já sabendo que se tratava da filha do Emílio Garavini e cunhada do mano Eduardo.

O batizado foi realizado, e logo em seguida o garoto recuperou-se para surpresa de todos e glória de Deus, e tornou-se um rapagão forte e espadaúdo. Por várias vezes papai o mostrou a mim e incontineti repetia o caso, arrematando: _" Por essas e outras que não gosto desse bicho chamado padre..."_ Chamava padre de bicho.

Américo deste fato em diante, começou a reparar na beleza, na graça, na simpatia daquela moça esbelta, cheia de vida, que num gesto de despreendimento o salvara de uma enrascada e de uma briga tão desigual. Aos puocos entre eles foi surgindo uma relação boa e gratificante. No início papai foi vê-la em função do que lhe devia, mas depois...

Depois começaram a se ver todos os dias e se encontravam por todos os assuntos. Ele arranjava um jeitinho de encontrá-la na porta do ateliê, e levá-la até sua casa em Copacabana. Assim sem que percebessem foram ficando ìntimamente relacionados e prontos para se casarem.

Eu cá do meu canto, olhando de camarote fatos idos e vividos, sou forçado a aceitar o padre e sua intransigência como peça fundamental no enredo da minha vida. Viva um menino desenganado. Viva um menino desenganado. Viva um padre sem escrúpulos. Viva um dinheirinho na bolsa de uma donzela. Viva a fé e viva o amor que surge em circunstâncias tão estranhas... muitas vezes não conseguimos explicar, quando amamos, onde começou o amor.

Termino: Eu vivo porque um padre rejeitou que um filho de anarquista batizasse uma criancinha desenganada. Belo antecedente.

Friday, March 09, 2007

31 - O Estádio da Vila Oliveira

Américo Saporetti Filho



Três fases do Estádio do Pontenovense, sendo que Hugo nunca chegou a ver a última, hoje a "Praça de Esportes Juca Fonseca"

Foi realmente uma epopéia a realização do estádio de futebol do Pontenovense na Vila Oliveira. Obra que exigiu dedicação de dùzias de abnegados, e a participação de toda a comunidade alvi-rubra. Ideal cultivado e acalentado durante anos pelos notáveis da galeria dos baetas natos de papo roxo, num momento de necessidade veio à tona com ímpeto, e levou, a par de sacrifícios magistrais, à consecução de obra tão grandiosa.

Tudo começou com uma briga, melhor, uma discussão acalorada entre Hugo Saporetti, diretor de esportes do PFC com Jaime Marinho durante uma partida de futebol, no campo cedido pelos Marinho dentro da sua propriedade. O PFC vivia de campo de favor.

No decorrer da briga o Jaime pronunciou com toda a empáfia de quem é senhor e dono a seguinte frase com todos os esses e erres: _"O Pontenovense está expulso deste campo. Nunca mais jogará aqui em minha propriedade."

A frase de Jaime foi só de efeito, logo voltou atrás, e com a interferência dos irmãos reconsiderou e se desculpou com Hugo. Assim o PFC continuou com o campo que ele fez, conservava e mantinha dentro da propriedade dos Marinho. Mas a frase de Jaime ficou martelando nos ouvidos e nas consciências dos pontenovenses e serviu para acelerar a construção do próprio estádio de esportes.

Então, pelos 1931, a idéia concretizou-se com a formação da "Sociedade Anonyma Stadium Pontenovense Football Club", cuja finalidade seria construir o estádio do PFC.

Com a venda de cotas e a integralização de capitais, já em novembro de 32 esta associação compraria por dezoito contos de réis, onze mil metros quadrados na Vila Oliveira e daria início assim ao ideal de todo pontenovense da época: ter seu próprio estádio sem depender de terreno de favor e estar sempre sujeito ao humor do dono. Foi um viva geral de regozijo.

Em tempo recorde, menos de dois anos, lá estava plantado, na virgem Vila Oliveira, um campo de futebol do mais alto gabarito e também quadras de vôlei, basquete e tênis. Foi inaugurado com todas as pompas e alegrias que um acontecimento deste calibre requer em 18 de agosto de 1934.

Mais tarde quando eu menino, e Hugo já morto, construiu-se o conjunto aquático, e a praça reinaugurada com o nome de "Praça de Esportes Juca Fonseca", em homenagem a um homem controvertido, mas pontenovense da gema e um dos líderes do movimento que culminou com a concretização da obra.

Recentemente, em 1984, estando em Ponte Nova, fui visitar o estádio de tantas boas recordações da minha juventude e me deu dó ao ver o estado de abandono, atingindo quase as raias da calamidade em que se encontra a Praça de Esportes do Pontenovense. As arquibancadas caindo aos pedaços e o mato invadindo tudo por todos os lados. O campo com grama alta por fazer, e algumas cabritas amarradas em paus fincados no gramado, comiam grama displicentemente, representando o desleixo da diretoria, e talvez da comunidade por todo um passado de luta e de raça, e o desconhecimento de toda uma tradição por quem recebe tudo pronto de mão beijada.

Deu-me pena o que vi. Quando expressei o meu desapontamento, se desculparam afirmando que a enchente de 1979(?), que martirizou a cidade, quase acabou com a Vila (a cidade já se refez dos estragos), e que também a atual diretoria resolveu desativar o departamento de futebol, por se sentir lesada no último campeonato. Assim o PFC não mais tem esportes, e dessa forma a praça está reduzida a ruínas, tanto materiais como das tradições elementares.

Pensei no vovô Hugo, no Dr. Odalino, em Eduardo, Juca Fonseca, Arnaud Rodrigues, Deco, e em todos aqueles que sangraram pelo ideal chamado Pontenovense Futebol Clube: Américo, Odolga, Lili, Daniel e tantos outros, e os vi revirarem-se em seus túmulos.

Não se menospreza e vilipendia desta forma tacanha a tradição conseguida a duras penas, e de valor incalculável. Não se deixa morrer por descaso ou incompetência o que sempre viveu no amor e na convicção de um ideal.

Meu coração ficou do tamanho de uma jabuticaba, fruta muito comum na Vila Oliveira quando lá chegaram os baetas para implantar a obra, ao ver a que nível está reduzido o clube do vô Hugo, dos meus tios, do meu pai, para só falar dos mais chegados. Clube que comecei a amar desde garotinho, ainda acompanhando meu pai aos treinos, aos jogos, e que perdurou e até hoje me vibra nas artérias e veias.

Se a atual geração soubesse ou avaliasse o que de garra, luta, emoções representou o patrimônio que lhe está entregue para administrar, se ela soubesse, não deixaria de reparar um reboco, de pintar uma parede, de recolocar uma maçaneta, de costurar uma bola, de gramar o campo, enfim, de manter a integridade de tudo, que por herança de fibra, está sob suas mãos.

Reagi, geração atual do Pontenovense! Reagi, e para frente, coração baeta! Mãos à obra, pois o tempo é carrasco e sua memória muito fraca. Inspirai na fibra e na vibração que estão por todos os pontos do PFC, esperando ser captadas.

Saravá!

Wednesday, March 07, 2007

30 - Emma Garavini : 'Eu fui jogada fora'


Américo Saporetti Filho

Emma na sua maturidade

O casamento de Emma e Alemão


Em Ponte Nova vivia há algum tempo, tomando conta da 'Garagem Lopes', um mecânico afamado de nome Antônio Krollman, mais conhecido como Antônio Alemão. Praticamente com o apoio de Annibal Lopes, introduziu e fez com que os fazendeiros da região acreditassem nas vantagens do caminhão e do automóvel, em substituição ao carro de boi e às charretes puxadas a burro. O Alemão percorria e desbravava aquelas regiões ainda tão primitivas com caminhões, e também afrontava as picadas com as baratinhas de vinte e trinta. A fama do Alemão correu logo por toda a Mata Mineira.

Tio Emilédio não saía da oficina do descendente de germânicos, e queria saber tudo sobre carros e não perdia a oportunidade em dar uma volta com o mecânico a testar autos, ou a verificar se os consertos estavam adequados. E queria aprender a dirigir e passear de automóvel pelas redondezas, causando emoção nas garotas. Alemão, de olho na Emminha, não perdeu tempo em usar este expediente para trazer a menina para o seu lado, e com isso conquistá-la; só aceitaria ensinar ao Emílédio 'pilotar' automóveis e até emprestaria a ele carros para programas com as garotas da cidade, se ele trouxesse a irmã para que eles fizessem algumas viagens. Emma não queria. Estava comprometida com o Mário. Mas o irmão insistia, e insistia com tamanha persistência que ela cedeu, mas impôs uma condição: só se a Telles fosse junto (Telles era uma garota insuportável para o irmão).

Não é que o Emilédio nem se tocou e conseguiu que a Telles aceitasse fácil, fácil. E lá se foram eles até Urucânia num domingo maravilhoso de céu azul. Tia Emma vomitou a viagem inteira, tal o mal estar que o alemão lhe causava, ou seria o balanço do carro ou a poeira da estradinha?
Emma julgou mal o seu ato. Achou que tinha sòmente cedido a um capricho do irmão sem maiores consequências e não podia imaginar o quanto estava mudando o seu destino, para pior.]
Nesta época o coronel Emílio descobriu as 'Cartas do Reinaldo' que estavam em cima do guarda-roupa, e dizendo _'Deixa ver estas bagatas'_ leu-as e ficou sabendo do namoro do caçulinha com o rapaz do Rio. Receioso que a filha viesse a encontrar a mãe que morava na capital federal, incontinente proibiu o namoro de maneira terminante, e sem ouvir as argumentações da filha.
Iniciava assim, de forma impiedosa, todo o drama de uma existência de quem não merecia sofrer tanto e qu tornaria amarga sua longa vida.

E na cabeça da moça as vozes sopravam argumentações do tipo _'Emma, acha que o Mário vai querer você, agora que sabe que sua mãe é uma adúltera? Acha?' _ E assim foi perdendo as forças para lutar pelo seu querido carioca.

Tio Emilédio voltava à carga levando a irmã para o lado do 'Alemão', e usufruindo dos carros novos e podendo guiá-los.
Na cabeça da eufórica e esfusiante Emminha começaram a surgir dúvidas atrozes. 'Será que não tenho direito à felicidade porque minha mãe errou? Será que tenho que me contentar com os Alemães de quem não gosto porque os Mários vão passar ao largo pela barreira do passado dos meus pais?'

Este tumulto existencial envolveu-a e inverteu seu modo de ser. Aceitou os galanteios do mecânico e breve, em 1931, numa cerimônia concorridíssima, Emma Garavini passou a assinar Emma G. Krollman. Casou-se sem gostar, mas foi confortada pela mana Beatriz: _'Com o tempo aprendemos a gostar do homem que nos escolheu, e além disso mana, no nosso caso não podemos almejar grandes conquistas.'

Tia Emma viveu durante vinte e dois anos com este homem que bêbado, foi seu carrasco: 'Sóbrio' _ me disse ela certa vez _ 'ele até chateava de tão bom e delicado, mas era raro quando assim estava.'

A primeira vez que tia Emma separou-se dele com a aprovação unânime de toda a família foi em 1945. Não havia condições dela continuar vivendo com um animal-homem que só a maltratava e humilhava e que, sempre bêbado, quase chegou ao extremo de assassiná-la.

_'Minha sorte'_desabafa ela_' foi que sempre me provi de ótimos vizinhos que ma ampararam nos momentos mais traumáticos da minha vida. Passada a tempestade, voltava como um cachorrinho com o rabo entre as pernas na espera de um milagre que não vinha. Se fosse hoje, com as mulheres liberadas e se separando por bugigangas, não teria aguentado um sequer do que sofri nas mãos do Alemão.'

Depois do desquite, o Antônio Alemão, tal uma coisa ruim, parou de beber como se o casamento lhe induzisse ao vício terrível. Emma então foi aconselhada pelo boníssimo padre Alcides Lanna, para quem o casamento é indissolúvel, e o que Deus uniu o homem não pode separar, a voltar a viver com seu marido, pois é ao lado dele seu lugar, e outros chavões da mesma cepa, que a simplicidade do reverendo usava sem ter medo do ridículo. Tais como: ele é seu marido; Deus fez-lhe ver o caminho do bem e assim deixou o vício; você está vivendo em pecado, etc etc etc. Não resistiu às argumentações do bom pastor, e reatou seu casamento com o Alemão, com a promessa dele que não colocaria em vida mais uma gota de álcool na boca. Cumpriu a promessa por um ano, e neste tempo tia Emma viveu com um homem sóbrio, bom, responsável e carinhoso.

Todos os dias pedia a Deus e aos Santos de sua devoção para que ajudassem a conservar o Alemão sóbrio, longe se qualquer tipo de bebida. O medo de que ele tivesse uma recaída a atormentava de maneira alucinante. Havia uma vida já vivida que só de pensar pudesse voltar dava-lhe calafrios e transe de pânico. Neste episódio da reconciliação com o marido, tia Emma teve a reprovação de todos da família, que se reuniram em assembléia, discutiram pormenorizadamente a questão, e resolveram que se ela persistisse nesta insânia, eles a considerariam fora da família e cortariam relações.

Teve o desprezo e o gelo dos itmãos durante doze anos, e para eles ela era uma vagabunda, amante do seu marido.

Tia Emma e o Alemão mudaram-se então para Juiz de Fora, e ela parecia estar num paraiso, ao lado daquele homem trabalhador. Era bom demais para continuar.

A desgraça voltou num dia fatídico em que Alemão recebeu em translado para Juiz de Fora os restos mortais, a ossada, do seu pai. O choque foi muito grande para aquela estrutura de homem fraco, que não resistiu à emoção do impacto e recomeçou a beber. Para tia Emma, de enxurrada voltaram as ameaças, os sobressaltos e os traumas.

Alemão não bebia durante o serviço, era vigiado pelos colegas. Para despistar, costumava usar de vários ardis, como tomar seus goles de cachaça em xicrinhas de café. Apesar de chegar bêbado todas as noites, nunca faltou a um dia de serviço. Levantava, depois de dormir como um porco, tomava um remédio contra ressaca e trabalhava o dia inteiro como se nada houvesse, nunca queixou uma dor de cabeça. Mas depois do trabalho, invernava em algum botequim e deixava chover goles até alta madrugada. Bêbado que nem gambá, dirigia para casa.

Tia Emma era obrigada a ficar esperando-o acordada, pois se não atendesse com presteza a porta, ela a colocava abaixo a pontapés. Vivia num inferno a Emminha, envolta nas chamas do pavor. Vez por outra lembrava-se do Padre Alcides. e preguntava-o em pensamento: 'Será que Deus não tem solução para um casamento como o meu? E por que permitiu que eu me unisse ao Alemão se sabia que não daria certo e que a sua igreja não admite em seu nome que se separem os errados? Por que?'

Uma noite foi chamada às pressas para acudir seu marido. Chovia torrencialmente e ele jazia estatelado na sarjeta de uma enxurrada, a água suja envolvendo-o. _ 'Como é pesado um homem bêbado, e além de tudo encharcado! Eu ali ajudando-o, e meu capetinha lá dentro dizendo para deixá-lo entregue à própria sorte, melhor se morresse.' _ desabafa tia Emma.
Em 1952, depois de uma cena violenta, em que sua vida esteve por um fio nas mãos daquele alcóolatra, tia Emma largou definitivamente Antônio Alemão e foi viver sua vida longe dele.
_ 'Coitado do meu pobre pai'_ me disse numa madrugada _ 'terminou com meu namoro e com o grande amor da minha vida, pois não me queria no Rio de Janeiro, por causa da Pinota, mas não conseguiu mudar minha sina. Estou aqui no Rio há mais de trinta anos, e pressinto que vou morrer nesta cidade de que tanto gosto. Como foi ingênuo seu avô...'

Hoje a Emminha é uma velha amarga, beirando os oitenta anos de vida. Vida na qual foi marginalizada e que merecia ter vivido melhor, no seu enfoque. Segundo suas declarações, viveu sendo lesada. Foi lesada no amor, quando obrigada a se casar contra a vontade com o homem errado; lesada na distribuição da herança por vovô Emílio ter beneficiado uns em detrimento dela; e por fim lesada pelo Miguel da Bebé, quando colocou em suas mãos o dinheiro do apartamento que vendera no Rio, após a morte do tio Emilédio, para que ele comprasse outro em Campinas, ou uma casa. Insiste que ele a convenceu a aplicar o dinheiro no banco que gerenciava e receber os rendimentos. Só que o principal foi perdendo o valor, e ela ficou sem dinheiro e sem imóvel. Culpa até hoje o Miguelão e sua descendência.

Acho que usou um lugar comum quando me disse que foi uma laranja muito doce e bonita, arrancada antes do pé, descascada sem cuidado com as unhas e sugada violentamente, para depois servir de mamucha a ser chutada, e hoje apodrece a um canto, mofada e sem utilidade.

Numa noite de 86 fui encontrá-la num apartamento modesto da rua Bolivar em plena Copacabana. Conversamos até três horas da madrugada, e entre amargurada e eufórica, com a tesoura na mão, guardando ainda, na beleza do talhe do vestido que ia se formando aos poucos, a grande modista que sempre foi, me contava fatos da sua vida, desabafando contra tudo e contra todos.

Ainda nela há muita esperança de vida, apesar de viver à espera da morte. Quando seu irmão gêmeo Emilédio faleceu em 1964, ela julgou que, pela lei dos gêmeos, lei supersticiosa criada pelos próprios gêmeos, ou por quem estiver interessado em tirar proveito deles, ela morreria em seguida, breve. Então fez imprimir comunicados fúnebres com fotos dos dois, datas de nascimento e do falecimento do irmão, e local vago para preenchimento da data do seu falecimento. Recebi um impresso deste para rezar pela alma, e senti um forte calafrio. Desde 64 ela vive em sua casa numa atmosfera de morte.

Uma mística envolvente nos embala naquele apartamento. Tia Emma vive de algumas costuras, de uma mínima aposentadoria do Alemão seu marido, do aluguel de quartos para quatro moças, e de ajudas eventuais de parentes. Além, é uma pessoa só e doente, crente no poder da oração e da amargura, acredita em Deus e nos mortos, mas descrê nos vivos.

Num caderno que folheei estavam lá prepatrados por ela, diversos modelos de cartas e telegramas para os mais diversos fins. É só escolher e mandar depois de transcrever para o papel.

Na sua prática de costureira e modista, tem a particularidade de tê-la sido de dona Risoleta do presidente Tancredo Neves, de suas filhas e íntima da família. Conseguiu através dele, com a influência política do grande mineiro, colocação para várias pessoas. E por mais de quinze anos conviveu com eles, ali num cantinho da casa deles, costurando e ouvindo e sentindo, e às vezes sendo confidente.

Separaram quando os Neves foram para Brasília. Guarda muitas recordações da família e me afirmou que o Tancredo não é e nem nunca foi esse santo que todos querem implantar na nação; que era mulherengo e que ela presenciou várias brigas feias dele com a Risoleta. Quando a tia fez estes comentários, o Tancredo morrera dias antes e o país ainda estava sob o impacto da sua morte.

Na entrada do ateliê da tia, um cômodo do apartamento adaptado rùsticamente para as funções, com duas máquinas, uma mesa alta e grande para cortar, um manequim velho, um guarda-roupa e cadeiras, figurinos e um rádio ligado, muita linha, pano cortado e inteiro, algumas caixas de sapato fechadas em cima de um usado móvel de canto, e presa com fita adesiva num dos lados do velho guarda-roupa, esta poesia do consagrado Bastos Tigre:
"Entra pela velhice com cuidado
Pé ante pé sem despertar rumores,
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glória e ilusões d'amores.

Não te seja a velhice enfermidade,
Alimenta no espírito a saúde,
Luta contra as tibiesas da vontade,
Que a neve caia a teu redor não mude.
Mantem-te jovem pouco importa a idade,
Tem cada idade a sua juventude."

Tenho dito.
 
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