FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, March 12, 2007

32- Papai e Mamãe, Casamento à Vista

Américo Saporetti Filho


A beleza de Ginette...

e a juventude de Américo...


A vida do quinto filho de Hugo e Ida movimentou-se muito desde o Propedêutico. Espírito ativo e empreendedor, apesar da pouca instrução, ainda jovem foi admitido como atendente no Centro de Saúde de Ponte Nova. Isto depois de vender muito frango, verdura e ovos para a mãe quando menino de calças curtas e de acompanhar o pai pelas bibocas da cidade oferecendo a sorte através do jogo do bicho que Hugo bancava.


Américo instintivamente, e por sensibilidade, tinha consciência de que a vida não podia ser vivida tocando flauta no vai da valsa, e que eram mister lutar para elevar a condição, e deixar os filhos que teria, um passo acima na escada da melhoria social. Não quero com isto dizer que desprezasse os prazeres, lá isso nunca.

Ardoroso jogador do Pontenovense, desde cedo vestiu a camisa de 'center forward' daquele clube fundado e mantido vivo respirando sadio pelo seu pai. Exímio pescador nas barrancas do rio Piranga, de onde tirou belas piabas brancas e vermelhas, piabanhas, surubins, lambaris, corvinas, bagres, cascudos, mais tarde adorou a caçada de pio ao macuco e ao jaó, e também a emocionante caça ao veado. A vibração era tão grande que todo ano realizava com outros apaixonados a 'Caçada Grande', e por quinze dias, se embrenhavam pelas matas do Brasil, caçando e pescando. Papai também participava, com seu espírito brincalhão, dos blocos de carnaval, coqueluche da sua juventude, e que davam à festa de Momo um colorido especial e bem típico.

Namorava muito, era festeiro e gostava de bebericar uns copos de vinho assim também como deitar frequentemente com mulher dama.

Sim, ele gostava de tudo isso, era um cara normal para sua época, mas como dizia, não descuidava de suas obrigações, e bem cedo, utilizando-se do decreto federal 20/70, começou a Faculdade Livre de Pharmacia e Odontologia, que não terminou, mas que lhe deu conhecimentos para desempenhar com desembaraço e eficiência suas funções no Centro de Saúde. Sua disposição, dedicação e interesse fizeram dele querido dos médicos e da população humilde da cidade que ele sempre dedicou especial atenção.

De gênio forte e intransigente, radical em seus princípios, mantinha acordados no coração desaforos recebidos. Revidava sempre qualquer ofensa, e não deixava passar em branco mágoas que lhe causassem.

Meu pai cresceu e maturou seu espírito em Ponte Nova vendo injustiças, recebendo-as e debatendo, querendo mudar o mundo, ao menos à sua volta.

Seu amigo inseparável de boemia e de serestas era o Antônio Lopes, apelido Antônio Pezinho, pelo tamanho descomunal do pé, que por ironia do destino ou de alguma força que não entendemos, teve, no fim da vida, uma doença nas pernas que obrigou os médicos a lhe amputarem os pés. Será que ele maldisse pela vida os pezões que Deus lhe deu? Vá lá saber...
A voz de Antônio Pèzinho era bela, maviosa, seresteira, e coadunava com as noites de lua. Com esta voz como fundo, papai derretia debaixo das janelas das eleitas ou pretendidas, os corações das mocinhas casadoiras.

Namorou firme a Odila Clímaco, e durante muito tempo, nós pequenos, mamãe brincava conosco, mostrando a Odila, baixa e gorda, traseiro de tanajura, a rebolar aos trancos: _'Olhem lá quem era para ser mãe de vocês!'_ e dessa forma espicaçava o pai. Nós reclamávamos. Nosso amor pela mãe era intransferível e não podíamos nem pensar em outra mãe. E nossa santa ingenuidade não permitia decifrar o sentido das farpas dirigidas por mamãe ao papai. E os mais novos choravam só de pensar.

Desculpe-nos Odila. Você é muito boa, mas para nós foi sempre aquela que poderia ter sido nossa mãe, e nós, por unanimidade, não queríamos mudar de mãe. Sei também de outra mocinha na vida de papai: Célia Lopes, irmã do Fiinha, que mais tarde seria um grande amigo do velho e companheiro de caçadas, ou dr. Zé Lopes, como papai gostava de se referir a ele com outras pessoas. O namoro com a Célia foi um namoro às escondidas; a família não fazia gosto, papai e ela enfrentando tudo até que não foi mais possível suportar. Célia, pressionada, cedeu às ordens da família e aceitou o partidão imposto que lhe poderia fazer feliz, com condições de a tomar por esposa de maneira firme e decidida.

O casamento de Célia com alguém imposto pela família fez papai sofrer muito. Ela também sofreu um bocado bom. Como somos cruéis impondo aos que mais amamos certas soluções para suas vidas, que são convenientes para nós! E se alguém nos pergunta, bradamos olhando o céu, como a demosntrar a conivência de Deus. "Fizemos o melhor para..." e desta forma amansamos nossa consciência e damos satisfação aos que nos cercam. Nunca dizemos: "É o melhor para a felicidade deles. Não devo interferir. A vida é deles. Se amam e têm a minha bênção." Nada disso, impomos a nossa vontade sobre a felicidade e a paz dos nossos sem o mínimo respeito pela individualidade. Se hoje ainda é assim na maioria dos casos, pensem em 1936, quando ninguém desrespeitava a vontade dos pais. Assim foi com Célia e papai. Bom para mim, que em virtude disso estou aqui neste mundo que, bem ou mal me dá muito prazer.

Vim a saber que na semana do casamento papai cá de baixo, no Centro de Saúde, e ela lá em cima, morro do cemitério, alpendre da sua casa, trocavam juras de amor por mímicas, juras de amor eterno. Quando tudo estava para se consumar, devolveu o retrato do seu amado com uma frase escrita a pena seca de maneira cuidadosa, só vista virando o retrato de certa forma contra a luz: "Eu te amo."

Nesta época de carência afetiva extrema, papai conheceu a filha bastarda do coronel Emílio, minha querida mãe, que aprendia a costurar no ateliê de dona Alice, esposa do Didico, num casarão ao lado da igreja e perto do Centro de Saúde. Mamãe ia e vinha por ali e já fora notada pelo jovem Américo, mas houve um fato especial que aconteceu pelo destino das coisas para unir os dois.

Um dia uma senhora em prantos interrompeu o serviço de papai para chamá-lo a ser padrinho, pelo amor de Deus, do seu filhinho de meses, bebezinho ainda, que estava desenganado pelos médicos e era pagão. A mãe, pobrezinha e simples, recorria a quem por várias vezes os atendera com tanta educação e presteza no posto de saúde e tomara com carinho o seu filho no colo.
Papai aceitou emocionado, e rápido foi tratar das formalidades com o padre. Surpresa. Levou um susto quando o eclesiástico condicionou o batizado ao pagamento adiantado e foi insensível às observações de que era batizado de urgência, a criança estava às portas da morte, não tinha dinheiro no momento, esperasse até o fim do mes, ele se comprometeria a pagar assim que recebesse, em hipótese nenhuma seria lesado. A conversa já era neste momento uma discussão, e tomara um tom acirrado, de um lado um leigo, e do outro um padre da igreja católica.

O clímax foi atingido quando o padre insultou, numa frasezinha pequena, a pessoa que papai mais amava, e preconceituosamente a colônia italiana: _"Como posso confiar num filho de anarquista e ainda por cima imigrante italiano?" O sangue subiu à cabeça de Américo e ele foi contido por fiéis, quando partia para cima do padre que neste momento rapidinho se enfurnara na sacristia, dando com a maior frieza o assunto por encerrado.

Ginette, que rezava no local (era da congregação das Filhas de Maria), vendo toda a confusão, inteirou-se do problema e prontificou-se a emprestar o dinheiro. Américo aceitou prometendo que pagaria tudo logo que pudesse, já sabendo que se tratava da filha do Emílio Garavini e cunhada do mano Eduardo.

O batizado foi realizado, e logo em seguida o garoto recuperou-se para surpresa de todos e glória de Deus, e tornou-se um rapagão forte e espadaúdo. Por várias vezes papai o mostrou a mim e incontineti repetia o caso, arrematando: _" Por essas e outras que não gosto desse bicho chamado padre..."_ Chamava padre de bicho.

Américo deste fato em diante, começou a reparar na beleza, na graça, na simpatia daquela moça esbelta, cheia de vida, que num gesto de despreendimento o salvara de uma enrascada e de uma briga tão desigual. Aos puocos entre eles foi surgindo uma relação boa e gratificante. No início papai foi vê-la em função do que lhe devia, mas depois...

Depois começaram a se ver todos os dias e se encontravam por todos os assuntos. Ele arranjava um jeitinho de encontrá-la na porta do ateliê, e levá-la até sua casa em Copacabana. Assim sem que percebessem foram ficando ìntimamente relacionados e prontos para se casarem.

Eu cá do meu canto, olhando de camarote fatos idos e vividos, sou forçado a aceitar o padre e sua intransigência como peça fundamental no enredo da minha vida. Viva um menino desenganado. Viva um menino desenganado. Viva um padre sem escrúpulos. Viva um dinheirinho na bolsa de uma donzela. Viva a fé e viva o amor que surge em circunstâncias tão estranhas... muitas vezes não conseguimos explicar, quando amamos, onde começou o amor.

Termino: Eu vivo porque um padre rejeitou que um filho de anarquista batizasse uma criancinha desenganada. Belo antecedente.

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