FAMÍLIA SAPORETTI

Wednesday, November 15, 2006

25 - Eduardo e Beatriz, Mais um Encontro Saporetti-Garavini

Americo Saporetti Filho



Foto do casamento Edu/Beatriz. Ao lado da noiva em pé À esquerda Emílio e à direita Eduardo, Sentado ao seu lado está Toni, cujo ombro é tocado provavelmente por Zefina. À extrema direita, agachado, Hugo Saporetti.





Armazém de secos e molhados de Eduardo. Na foto, esquerda para direita, Lili, Eduardo, Hugo e Ida.

A primeira vez que Eduardo conversou com a saudável Beatriz foi num domingo de julho de 22, quando, esfuziante de alegria, depois de um jogo de futebol pelo Pontenovense, que venceu, teve a idéia de visitar a irmã Linda e ver como estavam ela, Santo, e o filhinho Innocêncio, seu primeiro sobrinho.

Desde muito que Eduardo vinha tendo uma queda por aquela moça tão prendada, professora, e de uma beleza com um não sei que de intransponível. Na Sombra das Éguas, num pique-nique com que comemoravam o sagrado Dia do Trabalho, primeiro de maio, esteve a ponto de abordá-la, e no seu sonho de juventude, dar a ela todo o amor do mundo. Mas em realidade baqueou, e o viril jogador de tanatas vitórias no gramado, perdeu a chance do gol e teve de amargar o sabor de adiar a oportunidade.

E, sem esperar, apesar de ter previsto, encontrou a sua musa dentro do quarto em que sua irmã amamentava o pequeno filho. Aldo sentou-se ao lado de Beatriz assim sem jeito, compenetrado e sério, olhando fixo para o bebê que, sonolento, sem deixar o peito, ora sugava ora cochilava. Beatriz, a culta Beatriz, falava e ele só via, sem ouvir, sabendo que o que ela dizia era certo e concordava com tudo que aqueles lábios carnudos pronunciavam.

Recatadamente, Beatriz estava explicando para Linda as vantagens do leite materno para a saúde das crianças. Todas deviam ser amamentadas com leite de peito, mesmo que para isto fosse necessário se arranjar uma 'mãe de leite'. É claro, afirmava, que não devíamos chegar ao exagero da época da escravidão, em que as mães pretas eram obrigadas a deixar seus filhos sem leite para amamentar os sinhozinhos e sinhazinhas.

Tal absurdo só foi admissível na escravidão por que, no seu embrutecimento, os donos de escravos consideravam-nos não como seres humanos, mas como objeto de uso e fruto. Eduardo, rapagão da vida, que levava o tempo a filosofar e a vagabundear, ouvia com atenção a mocinha bem vestida, cabelos presos em coque, rosto largo, mais para gordinha, que sempre estava com sorriso modesto no rosto e imensa tristeza refletida nos olhos grandes.

_'Ainda bem que a escravatura acabou, e hoje todos nós somos iguais apesar de tudo. E os pobres podem andar por aí.' _A frase saiu tímida e tremida e foi difícil Aldo completá-la para valer. A moça reparou mas relevou o nervosismo daquele moço forte e bonito, irmão mais velho da Linda e resolveu mudar o ritmo da conversa para assuntos mais amenos.

_'Já ouvi falar de você. Dizem que é um craque do futebol.' _ Aldo gostava de falar de coisas assim: futebol, pescaria, jogo, bilhar e sinuca. Aquele assunto era com ele. Lembrou-se da história de jogar o peixe n'água que lhe contaram recentemente (ou seria sapo?) isto pouco interessava no momento. Interessava, isto sim, que a Beatriz dos seus sonhos estava ali do seu lado querendo conversar sobre futebol.

E ele falou sobre futebol, enveredou para a pesca e embevecidos, esqueceram que estavam dentro do quarto do menininho, que já dormia a sono solto. Acordaram quando Linda delicadamente pediu-lhes que saíssem do quarto, ela pretendia escurecê-lo para que o sono do filho fosse calmo e sem nenhum tumulto.

Na sala o papo continuou animado, e sob os olhares dissimulados e incrédulos do coronel Emílio, começava ali, naquele domingo de julho, desta forma sutil e inexplicável, a relação de amor entre o grande jogador do P.F.B.C. (mais tarde P.F.C.) com a recém formada professora da Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora.

Mais uma vez a incoerência nas relações humanas entrou em cena ao levar estas pessoas tão diferentes em aspectos fundamentais a se unirem para viverem juntas por todas suas vidas. Aldo e Beatriz. Ele simples, primário, vagabundo, filósofo, aquele que não nasceu para ser alguém e que, como o pai, alegrava a todos com seu prazer de viver o momento presente, e que esbanjava habilidade em equilibrar e manipular a vida, as tristezas e fraquezas humanas.

Ela culta e bonita, estudada, professora, e totalmente ignorante da realidade da vida, iludida por palvras bonitas, apesar dos sofrimentos e traumas infantis, acreditando na espécie humana, e querendo se agarrar com todo vigor da juventude ao amor, e sonhando em ter uma família cheia de filhos, com marido, felicidade e prazer. Ah, a Beatriz, teria por terra todos estes devaneios em curto tempo, e, lutadora responsável, rígida mãe, severa esposa, aguentaria sòzinha todo o peso de uma família, que era preciso alimentar, cuidar, educar.

"Aldo e Beatriz, tão distintos no ser e no pensar, convidam para seu casamento na Igreja Matriz de Ponte Nova em 1923 e sentir-se-ão honrados com a presença de gregos e troianos para que presenciem uma união fadada ao fracasso, mas que insistem em realizar em nome do amor, da fidelidade e da esperança."

Nesses termos deveria ter sido lavrado o convite de casamento, mas é claro que não o foi, e esta consideração acre nada mais é do que uma avaliação e previsão dos fatos de quem vive a dezenas de anos depois que eles aconteceram.

O convite foi feito verbalmente, e o casamento íntimo para as famílias e os amigos mais chegados e de confiança. O velho Emílio ainda se ressentia da humilhação que a bela Pinota, amor de sua vida, lhe fizera, e não aceitava a sociedade espontaneamente e sim as pessoas de sua convivência em quem podia abrir-se, conversar despreocupadamente e confiar.

Por outro lado, o coronel gostava de festas e de vinho, e queria que sua bela bambina tivesse festa de deixar todos com boca aberta, uma festa de arromba, como Ponte Nova nunca tivera.

Vô Emílio ficaria magoado pelo resto da vida com tudo que lhe acontecera, e, como pessoa intimista e altamente responsável, era incapaz de prejudicar alguém. No entanto, esquecia e desprezava com uma força de leão, por toda a vida, quem lhe trouxesse dissabor ou que desmerecesse a confiança depositada. Assim foi com Pinota, assim seria com os Fonseca.

E assim o casamento dos primogênitos das famílias Saporetti e Garavini foi um acontecimento que deixou muita saudade, e que se comentou por muito tempo naquela cidadezinha da Zona da Mata mineira. Aldo e Beatriz, Beatriz e Aldo, casaram-se na igreja e no civil com todas as pompas. E a italianada toda estava lá, para uma gostosa palestra, que se tornava mais e mais acalorada e inflamada, em função da quantidade de canecos de vinho ingeridos. E vinho havia à vontade, como rissolis, copas e boa dança, que nisto vovô era mestre, e dançava até o sol raiar, e não enjeitava contradança.

De início, o vigário se recusou terminantemente a realizar o casamento daquele anarquista, filho de anarquista, não temente a Deus, e que não frequentava a igreja e nem praticava a fé católica. Um impasse desagradável, que teria que ser resolvido, senão podia empanar o brilho que se queria dar àquela cerimônia. Foi preciso a atuação de dona Emma, praticante do culto e assídua às missas de domingos, secundada pela presença marcante de Emílio e a promessa de levar o rapaz até a presença do pároco para que conversassem.

Assim foi feito e antes dos proclamas, tio Eduardo foi dissecado pelo vigário, que quis saber se era ateu, se batizado, qual o conceito que tinha da igreja e se católico, mesmo que não praticante. Aldo bem ensaiado, saiu-se bem, fingindo ser o que não era e tranquilizando a consciência do sacerdote. Foi uma brincadeira a mais na vida de quem viveu o seu tempo todo brincando.

E também, o que não faria aquele jovem romântico pela doce Beatriz, por aqueles grandes olhos negros penetrantes, aquele corpinho de garça assustada, pedindo sempre proteção e amor. Por ela negou diante da igreja católica suas convicções anarquistas, mas não deixou de praticá-las. Foi durante toda a vida um anarquista convicto, e este foi o seu mal. Beatriz não soube entender suas convicções e de gota em gota, tudo o que era maravilha se despencou na imcompreensão, que dá na desavença e na discórdia irreconciliável. Viveram juntos durante toda a vida para salvar as aparências e não traumatizar ainda mais os filhos, que já viviam com o estigma de terem a vó adúltera e o vô corno.

Tio Eduardo sempre foi um homem do mundo e seu apego não poderia ser, em hipótese alguma para sempre. Tia Beatriz não percebeu isto e exigiu que ele assumisse o controle e a responsabilidade do lar. Era obra hercúlea para nosso filósofo da vida que encarava o vagabundo como ideal.

Isto posto vamos ao casamento. Papai com oito anos assistiu com olhos de criança o casamento e me contou a festa. Hugo em terno branco e camisa também branca, paletó aberto, sorria seu sorriso franco e cheio de graça. O noivo, engalanado, num terno de tropical inglês, corte ganho de presente, gravata borboleta, cabelo partido ao meio, nervoso na igreja com a demora da noiva.

Tia Linda e tio Santo estavam sóbrios e bem trajados como padrinhos do noivo. Indiferente à cerimônia e correndo para todo lado, o pequeno Innocêncio, filho do casal, aproveitava a oportunidade para brincar e colocar em polvorosa o padre, a dona Emma, sua protetora, os pais e desviar a atenção de todos da cerimônia.

Como é bom ser criança e ter igrejas repletas para se brincar, casas com bibelôs e porcelanas e espaço para se viver despreocupadamente, só despendendo a abundância de energia que convive no interior do pobre corpinho, e que quer sair por bem ou quase sempre extravasar por mal.

Vovó Ida foi ao casamento - que sacrifício - com seu melhor vestido surrado, cabelos em pituca, sem nenhuma pintura, que vaidade não tinha nenhuma - acredito que não teve tempo de pensar em ser vaidosa, a vida não lhe permitiu esta opção - e vovó ficou o tempo todo sentada, com os pés fora dos sapatos, que lhe apertavam os dedos, acostumados a viver esparramados em tamancos bem folgados. Era sacrifício de dar dó ver a pobre vovó em festas de casamentos, enterros e que tais com sua fatiota e seus pés apertados em sapatos. Que desconforto, Santo Deus!

Tia Dora e tio Nello, pequenos, ficaram aos berros com vizinhos. Queriam ir. Américo não ia?...Papai, tio Lili e tia Vanda, em roupas simples, esperavam ansiosos pela festa. Para eles toda aquela cerimônia era patacoada. O que contava mesmo eram os doces, salgados e refrigerantes que estavam na casa da noiva esperando por eles.

A fama do Coronel Emílio corria solta em Ponte Nova e nunca uma festa sua deixou a desejar. Do lado da noiva todos muito bem vestidos, cheirosos e esbeltos, ostentando pompa. Toni, com sua basta cabeleira ainda em pleno viço, dentro de um terno azul com listras pretas, padrinho da noiva, sorria para as moças, aquelas com quem simpatizava, e mandava-lhes chispas com seus olhos claros. Reinaldo, o almofadinha, aproveitava estas oportunidades para fazer novas roupas dentro da última moda e lançá-las na praça de Ponte Nova e arredores. Nesta ocasião esnobava um belíssimo jaquetão com colete, a calça boca de sino, primeira a ter notícia o povo da cidade, lenço no bolso do paletó da mesma cor da gravata borboleta. Era patente no seu olhar a superioridade com que encarava tudo e todos que ali estavam. Vivia em Ponte Nova mas não pertencia a ela. Seus desejos e sonhos voavam sempre que podiam para São Paulo e em breve deixaria a cidade natal para lutar e enricar na cidade grande.

Emma e Emilédio, os gêmeos, juntos, belos, fortes, airosos, corados... quem os visse assim tão pródigos não podia nem sonhar o que o trágico destino lhes reservaria por serem tão saudáveis. Delumbrante, ela parecia ou merecia ser uma rainha naquele vestido preto de seda longo, deixando entrever a ponta de um sapato alto importado a cada passo, braços e colo nus, o pescoço envolto num colar de pérolas, pulseira no braço e anéis de brilhante. Flertava descaradamente com o rapaz da primeira fila, um jovem que deveria estar ofuscado pelo brilho das pedras e pelo esplendor de Emma. Gostava de namorar a Emma, mas antes gostava de trazer os homens de orelhas caídas e rastejando a seus pés. A identidade daquele rapaz se perdeu no tempo e nem ela mesmo saberia quem poderia ter sido se perguntada. O tempo escondeu a lembrança e não deixou lugar para uma cena tão insignificante. E o que teria acontecido a esse pobre rapaz que sentia ali o bafejo de um amor tão poderoso? Ninguém seguiu-o para saber.

Na igreja toda enfeitada de flores, a família e os convidados da noiva colocavam-se do lado direito e a família com os convidados do noivo do lado esquerdo. Simples convenção? Claramente distinguia-se os convidados do noivo e da noiva.

Dele eram os jogadores do Pontenovense Futebol Clube, operários, alguns italianos de contato e não muitas pessoas da sociedade. Eduardo como a família de vovô Hugo eram queridos na cidade, mais intensamente pelas pessoas humildes a quem defendiam e apoiavam nas suas reivindicações e eterna luta contra os patrões.

Do lado da noiva estavam as pessoas mais finas e requintadas da sociedade, ostentando seus vestidos da alta costura da época, e jóias e chapéus e tudo que tinham direito para uma ocasião tão distinta. Também alguns funcionários da Fundição Progresso. Para muitos vovô Emílio representava os patrões e a opressão que eles representam nas relações de trabalho. Emílio nada ligava para o que pensassem dele, e levava sua vida austera de muito trabalho sem dar a mínima importância para o que dele falasse a boca miúda. 'Nunca vou me candidatar a cargo político para ficar mendigando opiniões favoráveis'_ desabafava.

Dizem que foi discretamente vista na igreja com véu negro cobrindo todo o rosto, a mãe da noiva, a Pinota, que assistiu à cerimônia lá do fundo, protegida por uma coluna. Saiu furtivamente antes do término, com receio talvez de ser vista pelo coronel Emílio. Só suposições e boatos, nada de comprovado, ainda mais sabendo-se que a Pinota adquirira um medo mórbido ao ex-marido, que a fazia esconder-se em qualquer desvão, se pressentisse um encontro com ele, tremendo toda, como uma gatinha molhada em noite de inverno.

A festa, mais popularmente os comes e bebes, realizou-se na casa ampla da noiva, na rua da Praia, ao lado da Fundição. O noivo tentara de todas as formas junto ao sogro que permitisse a festa ser na sede do PFC, mas não conseguiu convencê-lo._'Lá não é lugar adequado para se receber todos os convidados, e também não se adapta a festa de casamento, e muitos convidados de outros clubes não colocarão os pés na sede do seu adversário nem mortos. Vê, meu caro genro, esqueça esta idéia que só iria nos causar transtornos e eu quero que tudo saia bem no casamento da minha querida bambina'.

E foi lá na casa da Praia do coronel Emílio que se deu uma das comemorações de casamento mais grandiosas de que se tem notícia na Ponte Nova daqueles tempos. Papai se lembra muito bem e diz que se tratou de um acontecimento que gravou na sua mente de menino de oito anos. Como aqueles fatos que não saem mais da consciência que eu, você, e todos nós temos, e que nos perseguem por toda a vida como parte integrante dela e da nossa formação. Papai se lembra dos quitutes, doces e salgados, dos convencionais e duns que nunca mais viu, e que sentiu daí para a frente só o sabor na boca e um ativar das glândulas salivares, lembra também do colossal bolo de casamento e das danças. Havia músicos tocando típicas músicas italianas. Vovô Emílio e dona Emma dançaram muito. Exímios na dança, apesar dos cinquenta e tantos anos, deixavam a todos de boca aberta pelo virtuosismo e pela leveza do corpo de ambos. Fred Astaire e Ginger Rogers. Emílio e Emma. Não faltou vinho, vinho italiano importado. Todos lembraram, depois de alguns copos, as terras d'Itália e cantaram canções típicas, exaltaram e explodiram corações. Alguns choraram, todos se emocionaram. As raízes e as origens são muito fortes e não há como furtar-se a emoções que entalam a goela e estraçalham corações de homens duros e rígidos.

Papai dormiu antes da madrugada e não pode ver o fim da festa, que só se extinguiu na manhã de domingo, com o sol belo e frio do outono. Foi então deixado deitado numa cadeira larga a um canto, e só acordou quando, altas horas, a mãe o cutucou, era hora de irem para casa.

A festa acabou, mas os comentários correram tempo e durante uma cena inteira foi lembrada e reverenciada como padrão.

Deste casamento tão pomposo nasceram Bebé (Maria Isabel) a 22 de junho de 1924, Élcio Emílio em 9 de julho de 1926 (morto com um ano e três meses, de crupe, a grande paixão de Eduardo) e Diana em de agosto de 1928.

As dificuldades financeiras sempre foram grandes para o casal, pois só Beatriz trabalhava duro como professora e trazia dinheiro para casa. Eduardo com sua sapataria, tribuna livre para todos e onde brotavam as reivindicações populares e as brincadeiras da cidade, e com seu futebol, não conseguia nem para salvar suas despesas. O coronel Emílio acatando os insistentes pedidos da filha, e só querendo o seu bem, financiou um armazém de secos e molhados para o genro, recebendo em troca algumas promissórias assinadas.

O negócio foi bem montado mas não foi para a frente. Tinha tudo para ser um empreendimento de sucesso, mas não o foi, pois todo mundo comprava fiado, a maioria não pagava, Eduardo não cobrava (_'Coitado, ele vai me pagar quando puder.') Aliado ao 'bom coração' faltava tino comercial e vontade de trabalhar duro. Tanto é assim que deixava o armazém nas mãos de empregados, ou fechava mais cedo para ir bater pernas pela cidade, ou treinar futebol lá no campo do Engenho.

Não demorou muito e foram obrigados a fechar o armazém para não quebrar de todo. Beatriz então teve de duplicar-se em trabalhos duros para pagar as dívidas. Aulas, costuras, doces para fora, etc, até altas horas, sábados, domingos, feriados. Quanto à divida com o pai, as promissórias assinadas, ele não cobrou e à mesa rasgou-as dando por encerrado o assunto._'E mais uma vez ali na minha frente eu levava na cabeça. Parte da minha herança foi rasgada à mesa para beneficiar um vagabundo.'_ sarcàsticamente comentou comigo tia Emma _ 'Era dinheiro meu que estava sendo rasgado por papai.'

Em 33 um reumatismo forte obriga Eduardo a deixar sua grande paixão, o futebol. Nesta época a convivência entre ele e Beatriz era insuportável, já brigavam demais, ela tentando trazê-lo à responssabilidade da vida que é luta, trabalho e consequentemente bem estar e prazer. Tudo a seu tempo e hora. Ele não estava preparado para isto e não entendia este falar.

O casamento desmoronava ràpidamente, as brigas passaram a acusações pessoais e a esposa com o apoio irrestrito das filhas ainda meninas arrasavam o esposo e pai. Eduardo começou a passar só o tempo indispensável com a família. Temendo represálias de toda ordem, evitava o contato com a mulher e com os filhos.

Contam que nessa época apareceu em sua vida uma crioula bonita, de feições amaciadas e sorriso lindo, anca avantajada, de nome Madalena ou Margarida. Eduardo, que em casa não tinha amor há muito, foi presa fácil deste estranho amor, que era quase só sexo e carinho, mas que lhe dava felicidade relaxante, pois não havia cobranças nem exigências sociais, nem ataque e malquereres. Vivia feliz em completo concubinato.

_'Quem herda não rouba. 'Diz o ditado, e ali estava ele, repetindo fatos vividos pelo pai com a negra Camila, porém de forma mais traumática, pois em função de uma total desarmonia no lar.

Beatriz não demorou muito a descobrir a traição. Italiana brava, foi até a casa da amante de seu marido exigir satisfações. No auge da raiva ou do ódio (hoje olhando a tia com mais de oitenta anos, semblante sereno, não consigo vê-la e descrevê-la dominada pela raiva e pelo ódio), repetindo, no auge do ódio e da raiva, reduziu a negra Margarida ou Madalena à sua condição de escrava que mereceria o tronco pelo que estava fazendo.

A negra ouviu tudo impassível, com a impassibilidade dos sofredores contumazes que se acostumam ao chicote, e ao fim falou com a firmeza do preconceito e com a força implacável de quem sabe tudo da realidade da vida: _'Sua branca criada a leite e pão de ló, pergunte ao seu marido porque ele vem até aqui. Pergunte também a ele o que eu tenho que você não tem para trazê-lo junto a mim. Vai e pergunte. Eu não sou ninguém, sua branca metida, mas eu tenho isto aqui'_ e batia insistentemente e freneticamente nas virilhas com a mão direita espalmada.

Tia Beatriz horrorizada saiu dali e não mais teve relações com tio Eduardo. Separaram-se de corpo e alma. Passaram a dormir separados e só viveram sob o mesmo teto a vida inteira para salvar as aparências.

Para salvar estas aparências eles sofreram muitas humilhações dos filhos e trocaram entre si palavras ásperas a vida inteira, o que aprofundava mais e mais a cada dia o abismo que cavaram entre eles.

Quando tio Eduardo morreu de câncer em 1975, tia Beatriz chorou o companheiro morto e talvez tenha chorado o amor que lhe dera e, quem sabe, também tenha chorado a felicidade perdia pela intolerância que acabou com este amor tão real. Agora nada mais havia a fazer, tudo eram saudades e flores murchas numa tumba de cemitério de interior.

Capítulo encerrado.


3 Comments:

  • At 6:04 PM, Anonymous Anonymous said…

    que filé! ;)

     
  • At 4:13 AM, Blogger alex saporetti said…

    pois é, que bom que gostou... tem uma foto incrível do casamento que ainda vou colocar. o blogger de vez em quando empaca e não consigo carregar iamgens... aguarde. bjs.

     
  • At 5:55 AM, Blogger Giovanna Carvas said…

    Ei Américo,
    meu nome é Giovanna Carvas, sou estudante do curso de pedagogia na Universidade Federal de Viçosa e realizo um trbalho sobre o Grupo Escolar Antônio Martins - PN. Achei o blog por acaso enquanto procurava alguma referencia sobre Beatriz Garavini, professora do grupo em questão. Gostaria de saber se voce tem algum informação que me possa ser passada a respeito dessa importante figura na história dessa escola. Algo como um pequena biografia. Desde ja agradeço e o parabenizo pelo blog.
    giovannacarvas@ufv.br

     

Post a Comment

<< Home

 
how to add a hit counter to a website