FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, November 06, 2006

23- Neneti e Zefina

Américo Saporetti Filho

Enquanto papai pegava no lápis e papel, e iniciava no Propedêutico o contato com as letras e os números, mamãe começava a vidinha de bebê junto da mãe portuguesa, e recebendo as visitas do pai italiano, derretido em alegrias e satisfações.

Tia Zefina aí pelos onze anos, era quem cuidava da higiene da pequetita nos primeiros aninhos. Trocava-lhe as fraldas, dava-lhe as mamadeiras e fazia-a dormir, enquanto a mãe tratava de outros afazeres domésticos.

A menina Zefina era ampla em cuidados com a 'irmã' em afeto, e tinha com ela carinhos e zelos que deixava a todos admirados. Aquela menina gordinha e branquinha, de cabeça grande e olhos vivos, foi a bonequinha desejada que nunca tia Zefina tivera.

Toda tardezinha, após as inúmeras tarefas da casa e deveres escolares, a pequena Zefina passeava com a irmãzinha pelos arredores, toda satisfeita e feliz, nem sentindo o peso e os safanões que era obrigada a suportar. Por vezes chegava a se desequilibrar, mas se acostumou a carregar nos bracinhos miúdos aquela bonequinha que logo começou a andar e a balbuciar as primeiras palavras.

Em casa, a Portuguesa abria os braços e chamava a filhinha que, tartamudeando cambaleava, passos indecisos, entrava toda nos braços e abraços da mãe. O pai, coronel Emílio, também participava da festa e, quase sempre a meninazinha ia em sua direção, parava a meio caminho e voltava em desabalada carreira para os braços da mãe que aos risos a envolvia e, no impulso, elevava-a ao alto, soprando-a na barriguinha, fazendo-a pororocar aos risos alegres de todos. A Zefina observava tudo à distância.

Numa ocasião Zefina, imitando as brincadeiras dos adultos que via de soslaio, deixou sua bonequinha cair ao chão. Por sorte só aconteceu um galo na cabecinha e arranhões no joelho. Mas foi o bastante para a sova de vara de marmelo e ficar sem jantar, além de proibida de pegar a 'Neneti'.

Ficar sem jantar e a dor e os lanhões pelo corpo eram comuns na vida dela, e assim fàcilmente assimilava-os, e, na sua cabecinha em formação, iam ficando mágoas que despertariam mais tarde. Mas deixar a queridinha Neneti, não a trazer no colo, não sentir sua mãozinha aveludada de encontro ao rosto, não a embalar nem dar-lhe comida, era demais e ela sofria com este castigo.

A pequena inocente vinha para o seu lado chamando 'Fina, Fina' e parava olhando para ela, colocava a mão gorducha no seu rosto, se sentava do seu lado, e ficava olhando intrigada a impassividade da irmã como a perguntar:_'Fina querida, vem brincar comigo. Você ainda é minha amiga?'

E tia Zefina, com o coração na mão, permanecia impertubável, num estado de tensão só comparável ao medo de desobedecer às ordens da Portuguesa. Mas a própria Portuguesa teve de relaxar a proibição, afinal não dava conta sòzinha de cuidar da filha e por cima, a idade e a paciência estavam rareando.

Zefina exultou quando a volta lhe foi pedida como se nenhuma proibição houvesse: _'Zefina, dá de comer à Neneti.' _'Zefina, não esquece de passear com a menina.' E foram voltando os afazeres que eram mais prazer que obrigação, e davam à vida daquela menina tão sofrida algumas horas de bem estar e êxtase.

Em pouco tempo as duas irmãs estavam juntas em todos os lugares, exceto, é claro, de manhã, quando Zefina subia o morro do Propedêutico até o grupo, para receber os ensinamentos básicos do ensino primário que, a contragosto, permitiam na época que as mulheres tivessem acesso. No caso da tia, foi o coronel Emílio quem convenceu a Portuguesa que era necessário, e que não devia existir preconceitos entre o que era para mulher e para homem, pelo menos no que dissesse respeito à cultura, moral e dignidade. E conseguiu convencer aquela mulher rude, mas que o amava e fazia tudo que ele pedisse.

Assim, aos dez anos, ela sentou-se pela primeira vez nos bancos escolares, com caderno, cartilha, lápis, borracha, o coração aos pulos, grande entre os meninos e meninas de seis e sete, mas com muita vontade de iniciar o Bê com A, BA, Bê com E, BE, Bê com I, BI, Bê com O, BO, Bê com U, BU.

Quanta alegria sentiu no início, no meio, e quanta tristeza no fim, por ter certeza que só aquilo era o que teria direito a aprender, um curso primário e olhe lá, que já estava recebendo demais, vencendo tabus. Naquele tempo mulher não precisava de estudo, e sim saber cozinhar, passar, cozer, arrumar a casa, ser boa mulher, dedicada ao marido. _'Mulher tem que ser prendada.'_ diziam quase todos _'e boa dona de casa.'_ completavam. Tia Zefina se formou em 1924 e tirou o diploma do primário quando mamãe estava com três anos de idade.

Após os estudos, a tia então concluiria a sua especialização para o casamento e aprenderia corte e costura com dedicação e habilidade no atelier de dona Emma, e encontraria no filho de Emílio, o grande Toni Garavini, o homem certo para se dedicar como esposa.

No atelier, revelou-se uma costureira de mão cheia da noite para o dia. Dona Emma admirava-a pela sua dedicação, por sua fineza, educação, e por estar sempre alegre, com um sorriso nos lábios, pronta para a próxima tarefa, para a próxima, para a próxima...

Surgiu então uma dedicação toda especial de dona Emma por aquela moça pequenina, que parecia sempre em paz com as pessoas e o mundo. Talvez uma forma de substituir a perda das duas filhas em 1920, ambas tuberculosas. E tal foi a dedicação da boa Emma por Zefina que esta, ao referir-se a fatos da sua vida em conversa comigo, mostrou-me retrato emoldurado daquela imponente senhora, guardado como preciosidade, e declarou-me com emoção na voz:_'Aqui está a mãe que considero. Esta é minha verdadeira mãe'.

Tia Zefina passou a viver no atelier de dona Emma, e a ir para sua casa só para dormir, com isso evitava um maior contato com a Portuguesa.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home

 
how to add a hit counter to a website