FAMÍLIA SAPORETTI

Wednesday, August 30, 2006

17- O Filho do Francês e Outras Peripécias

Américo Saporetti Filho

A família reunida por ordem de tamanho: Eduardo, Linda, Líbero, Vanda, Américo, Dora, Nello


Hugo, o Anarquista


Ida, a Fortaleza


Hugo sempre foi simples e desprendido com as coisas materiais.

Em primeiro lugar por princípio e filosofia: não dava valor à propriedade, antes julgava-a contra a moral e um furto, de acordo com os ditames do anarquismo; segundo porque era um homem bom que gostava de ajudar os mais necessitados e aí avultavam suas qualidades mais relevantes: a casa sempre cheia de amigos e a distribuição com os outros do que ele tinha a mais.

A propósito, ainda novo em Ponte Nova, 1915 ou 1916, tomou sob sua responsabilidade a criação de um menino enjeitado, filho de francês com negra, que mais tarde se tornaria grande jogador do PFC e um exímio sapateiro de senhoras.

Este caso se passou assim: próximo à casinha dos Saporetti no Matadouro, morava uma negra amaziada com um francês louro. Esse francês viera há pouco para o Brasil, mantinha ainda forte sotaque, e tirara a rapariga do mau caminho e botara casa para ela. Dessa união nasceu filho negro de nariz afilado e cabelo bom. Quando veio ao mundo o pai francês estava ausente na construção da estrada de ferro. Ficava tempos e tempos fora, a negra sòzinha guardando amor. Foi batizado na igreja por padrinhos escolhidos pela mãe, com o nome de José Benedito. Quando o francês voltou e viu o menino, não quis saber de reconhecê-lo e largou a mulher, acusando-a de tê-lo enganado. A irmã dele, também francesa, tratou de registrá-lo no cartório, só que com outro nome, registrou-o Odolgan, que mais tarde se tornou Odolga, sem o ene final.

Não demorou muito a estrada acabou e o francês e sua irmã voltaram à França. A negra que um dia conheceu o prazer de ser mulher de um francês bonito, culto e rico, voltou a ser puta, deixando o filho sem ninguém, ao Deus dará.

Vovô tomou a si a criação de Odolga, o grande jogador de mais tarde, e um dos poucos que tem um nome para Deus e outro...como direi...para fins legais e de direitos. Filho de francês que nunca conheceu Paris.

Odolga era gênio folgazão e admirava uma farra e uns mais golinhos avultados de cachaça. Muito cedo começou a trabalhar na sapataria de Hugo, mas bastava receber o pagamento para torná-lo em pinga e esbanjá-lo com mulheres. Para evitar isto, vovô recebia o dinheiro dele e ia dando devagar, controlando para as despesas essenciais.Com vinte e tantos anos, deixou a família que o criou, deixou o Pontenovense do qual era um dos craques da cancha, e deixou enfim Ponte Nova e foi para Santos em busca de vitória na vida. Colocou lá uma sapataria para senhoras e chegou a ter prestígio de bom artífice. Morreu novo de câncer, não casou nem deixou filhos, viveu em constante solidão.

Odolga, Odolga foi o filho francês de vovô Hugo e vó Ida. Papai sempre se referiu a ele com muito carinho e realçou suas habilidades de futebolista. Foi realmente criado como filho e não me passa pela cabeça que possa ter sido diferente na casa dos italianos Hugo e Ida.

Aos poucos Hugo começou a dominar a cidade que tomara como sua. Deixou a sapataria do sr. Edvirges e colocou a sua própria com Eduardo e Odolga como auxiliares. Ali, ao bater das solas, sentados nos bancos com assentos de tiras de couro, passavam para uma prosinha desde os doutores, os magistrados, até os operários mais humildes. E foi daquele quartinho pequeno e rescendendo a graxa e couro que surgiu a centelha da primeira reivindicação operária de Ponte Nova: pagamento semanal ao invés de mensal, e oito horas de trabalho por dia. No dia 16 ou 17 de novembro de 1921, tendo como representante o poeta Francisco Soares, houve uma reunião operária no Cinema Brasil para expor aos empreiteiros civis e aos encarregados das obras municipais estas aspirações tão justas e que hoje em dia já fazem parte integrante da vida de cada operário. Na comissão que se formou, quatro, lá estava Hugo Saporetti para lutar pelos direitos dos operários.

Das discussões que se prolongaram pela noite adentro, os empresários só cederam em fazer o pagamento quinzenal e que quanto ao resto não cederiam uma linha porque 'os operários estão muito bem situados na vida ao passo que os patrões vivem na mais extensa penúria'.

Discutia-se tudo na sapataria e sabia-se ali em primeira mão o que a cidade fazia e as mais graves decisões. Mesmo aquelas polêmicas, antes de serem levadas à câmara pelos representantes do povo, eram tratadas exaustivamente na sapataria de Hugo e mais tarde na de Eduardo.

Lá eram realizados os trotes dos calouros do Instituto Propedêutico e do Ginásio Dom Helvécio, que o sucedeu. O espírito de Hugo transfigurado no seu filho Eduardo, o tio Eduardo de tão gratas recordações de vida, me faz vislumbrar a sapataria como local de agradável vivência de mundo e de bem estar.

Mas vez por outra exageravam nas brincadeiras que julgavam inocentes e, justificadas pelo imenso prazer de viver que todos deviam ter, mesmo nas situações mais incômodas, conforme seus argumentos.

Brincadeiras inocentes de Hugo e Eduardo eram, por exemplo, espalhar tachinhas nos bancos para que incautos, ao sentar recebessem inesperadamente tremendas picadas na região glútea, e ao mesmo tempo doses maciças de gozações. Haja humor e prazer de viver para receber com um sorriso este tipo de brincadeira.

Também gostavam de substituir a manteiga do pão por vaselina e oferecê-los às moças simples da roça, em atitude que deixava revoltada a população com tamanho desrespeito aos pobres e humildes.

Mas estes senões que, postos numa lupa podem denegrir a imagem de uma pessoa, não chegavam a comprometer a beleza deste foco de luz e de decisões, desta tribuna popular que foi a sapataria do italiano anarquista Hugo Saporetti.

Certa feita, num trote, pintaram com tinta para sapato as genitálias do filho do Dr. Lins e as de outros calouros do Colégio Dom Helvécio. O assunto passaria como fato normal, não fosse o inesperado das consequências. O filho do dr. Lins foi acometido de violenta alergia e seus órgãos genitais tornaram-se brutalmente grandes, inchados, causando pânico nos pais e amigos.

Dr. Lins deu queixa à polícia, exigiu abertura de inquérito, e nos jornais atacou os anarquistas e vagabundos. Ao final de algum tempo tudo foi esquecido, também o filho ficou logo bom, o trote não deixou sequelas, e o sol continuou a mandar sua luz-vida para a terra, e a lua a embalar os namorados. No entanto durante muito tempo o médico guardou mágoa contra Hugo e Eduardo pelo susto que o fizeram passar.

A par de tudo isto a família de Hugo crescia: em 1912 nasceu Vanda, como já comentamos, pouco depois da chegada a Ponte Nova; em 1914 papai, batizado Américo um ano depois, em 1915; em 18 a alegre Dora, e finalmente em 1920 para encerrar com fecho de ouro, Nello com dois eles.

Quando tia Dora nasceu a família já se mudara do Matadouro para o morro do Propedêutico, mas a vida ainda continuava dura e difícil, sem perspectiva de melhoras, e sòmente uma filosofia de vida anarquista, tendo uma senhora Ida de vontade férrea à frente para suportar e dar rumo ao barco, podia amenizar.


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