FAMÍLIA SAPORETTI

Tuesday, August 22, 2006

15- Ponte Nova, Minha Cidade

Américo Saporetti Filho

Não posso, nem consigo retirar da minha pele o cheiro desta cidade cheia de montanhas, morros, morrotes, onde o sol parece subir num muro, olhar primeiro para depois saltar, com seu brilho estonteante, e que ao entardecer sai de supetão, quando se dá por achado - cadê o sol?- já está atrás do monte, o que ficou foram os matizes mais lindos de vermelho, amarelo, misturados com o verde esmaecido da vegetação no horizonte.

Ponte Nova habitou em mim nos momentos mais tocantes quando, inocente, descobria o mundo e o mundo era ela, o bairro de Copacabana, o rio Piranga do fundo da casa, os pássaros no quintal, as rolinhas em coleção, comendo restos das lavagens dos porcos, colocados em chiqueiros sob pilotis no quintal junto ao rio, protegidos das cheias.

Me castigou nos anos mais fortes e agressivos da minha formação quando, impotente, vi um amigo ser tragado pelo Piranga de tantas alegrias, e encontrei-me frente a frente consciente com a morte, morte que julgava não existir para os meus e para os amigos. Choque cruel e desalmado. Ponte Nova habita em mim na avenida junto às meninas, o coração batendo forte, imensa vontade de namorar, a garota escolhida, o não ir, fraquejando, e toda a cidade sumindo debaixo dos meus pés. A polícia espancando bàrbaramente um marginal, e eu tomando afrontosamente a defesa do fascínora.

Eu nasci, cresci e me formei em Ponte Nova e ela me viu, me repreendeu, me educou, e apesar dos pitos, sempre ao fim sorriu para mim, e me deu a mão nos momentos mais difíceis. Não consigo dissociá-la do que sou, e me lembro dela em cada coisinha que faço, em cada expressão que digo.

Estou quase há trinta anos longe, e é natural que eu e ela hoje sejamos outras pessoas, mas nas minhas recordações e lembranças, estamos por inteiro, e lá acordei para o mundo. E o mundo na época era só ela, suas montanhas, montes, morrotes, seu Piranga tortuoso, e suas ladeiras íngremes.

Por motivos fúteis alguns, outros de sobrevivência (será?) e até motivos por influências diversas, deixei Ponte Nova, pela primeira vez antes dos quinze anos, e depois em definitivo aos dezenove. É-se obrigado a sair porque o futuro está numa cidade maior, com mais recursos, com mais facilidades, e onde se possa estudar e progredir. E desta forma, alucinado por estas porções de razões que tumultuavam minha cachola ainda criança e inexperiente, deixei Ponte Nova por Belo Horizonte primeiro, depois por São Paulo, antes passando ràpidamente por Goiânia, num pioneirismo que até hoje me comove, e ao mesmo tempo me dá satisfação.

Hoje massacrado pelos centros urbanos, estressado pela carreira que abracei, pela falta de humanidade das pessoas, tão diferente da dedicação e companheirismo da minha cidadezinha, tendo de viver em contínua vigilância, e vivendo em medo, relembro com saudades aquele amor de cidade que me afagou durante a infância e a adolescência, e que me teria dado carinho e uma vida sadia, ainda que simples, se lá tivesse ficado até hoje.

Mas saí, e não vou viver outra vida para ficar. Saí e tenho pouca coisa da minha cidade: algumas fotos, um levantamento aerofotogramétrico com o pomposo título de 'Ponte Nova vista do cosmo', alguns recortes de jornais da cidade. Coloquei o levantamento em um quadro, e está aqui em minha frente, fazendo-me compreender, recordar, e reviver todas as vezes que me sento à minha escrivaninha, momentos que vivi ali e que estão aqui.

Lá está o Piranga, como todo rio, sinuoso, usando a lei do menor esforço ao se deslocar para, com suas águas barrentas e vermelhas, banhar toda a cidade e arredores. Mesmo rio Piranga cantado em prosa e verso pelos escritores da cidade que nele fartavam de achar pretexto para composições literárias onde a lua refletia, o amor fulgia, a saudade ficava e as lágrimas alimentavam aos borbotões suas águas.

Havia muito de romantismo exarcebado aliado à boemia sincera dos rapazes do primeiro quartel do século, sendo diluido quando chegou em mim lá por 1950. Assim o rio Piranga era o símbolo onírico da cidade. Sobre ele se construiu em 1921 a Ponte de concreto armado na praia que, aos menos desavisados, pode induzir como sendo a origem ao topônimo do lugar. Nada mais errôneo, já que Ponte Nova remonta quase à fundação da cidade e se trata de ponte construída sobre o Ribeirão Vau-Açu, em substituição à tosca pinguela que caíra. O pessoal do lugar, quando se referia ao lugar, Rio Turvo, usava como referência a ponte 'Vamos lá na Ponte Nova' e ficou Ponte Nova até hoje e creio que não mudará nunca.

No entanto sobre o rio Piranga a história se repetira. Na praia havia uma ponte de madeira rústica e velha a ligar uma margem à outra do Piranga. No governo Athur Bernardes, a ponte de concreto armado foi construida com ferragem vinda da Inglaterra. Conta-se que os vergalhões de ferro redondo em comprimento de seis metros de início causaram um sério problema de engenharia, já que eram necessária dezesseis vigas de 14,5 m. e oito de 10 m. de comprimento, armadas convenientemente.

Chamou-se então Emílio Garavini e vovô, com todo seu engenho e arte, caldeou um a um os vergalhões, dando assim condições adequadas para a construção da ponte que, até hoje, incrustrada na rocha e com o Piranga de caudal, ora tranquilo ora violento, é um orgulho da cidade.

Vieram outras pontes e pontilhões de estrada de ferro, sendo o Piranga trespassado em várias partes e com a maior facilidade, mas nenhuma das mais recentes tem a beleza e a elegância da ponte da praia (infelizmente em nome de um progresso abstrato e sem sentido, a prefeitura fez um adendo à ponte, desfigurando-a, é uma pena).

Rio Piranga no meu tempo de garoto abundava peixes, e quantas vezes papai e eu, com varas de bambu preparadas cuidadosamente, samburai que na região não tem este nome, é sacola mesmo, anzóis, linha de aço e chumbada, e latinha de tomate cheia de minhocas catadas no jardim, ou lacraias, junto ao lixão em frente à Fuzarca, na beira do rio pescávamos uma fieira enorme de piabas brancas, vermelhas e corvinas, num espetáculo que me emociona até hoje, e que muitas vezes me põe a pensar. Vezes sem conta.

O rio deixou de dar peixes quando resolveram despejar nele dourados para procriação com a promessa de fartura em peixes. Envolvido pela ilusão que as autoridades competentes me deram na época, eu me via pescando e comendo peixes os mais saborosos durante o ano inteiro. Decepção, sumiram os peixces nativos e dos dourados poucas notícias tivemos, apesar da pesca ter sido proibida por mais de par de anos.

No Piranga aprendi a nadar, tendo como professor meu pai, que se orgulhava de ter ensinado a todos os seus filhos a arte da natação. Na sua simplicidade papai ensinou-nos o nado comum do rio, braçadas descompassadas e cabeça fora d'água, ensinou-nos também a boiar, arte em que era único e, acima de tudo, e aí vai o seu grande mérito, desmistificou a água para todos nós. É difícil deixar o Piranga, tanto ele é importante para nós, mas é necessário seguir outros assuntos e vamos lá.

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