FAMÍLIA SAPORETTI

Thursday, August 17, 2006

14- Hugo em Ponte Nova

Américo Saporetti Filho


Nas fotos o contraste entre Hugo à esquerda, e Emílio, à direita...


O outro vô imigrante italiano aportou mais tarde em Ponte Nova, em 1912, no mesmo mês da tragédia do Titanic, e com mais de década de vivência, lutas e decepções em solo brasileiro. Chegou com mulher mais uma vez grávida e três filhos pequenos de pés no chão, e loucos para parar em algum lugar e sustar aquela vida nômade que em suas cabeças de criança não tinha mais fim e só trazia problemas. Esperavam todos que o cabedal de recordações tristes e de sofrimentos durante a passagem por São Paulo fosse substituido por uma vida segura nas Minas Gerais.

Meu vô Hugo, disseram-me, gostou de Ponte Nova e viu no povo a solidariedade e a cortesia que há muito procurava, e também me informaram que o ar puro da cidade melhorou as crises de asma que lhe atordoavam. Assim Hugo Saporetti disse 'Hellás' com seu sotaque característico, olhou para a mulher de um lado e para os filhos que brincavam do outro lado, e resolveu ficar. Ida gostou da idéia, cansada que estava de andar por este mundo, nômade como os ciganos sem nunca ter nada de seu, aceitou incontinenti, e assim Hugo tomou a cidade do Piranga, a Princesa da Mata Mineira, como sua pátria, e viveu ali a partir de então os seus momentos mais caros, com seu gênio bonachão, com suas idéias anarquistas, seu amor pelos pobres e oprimidos, e filósofo do vagabundo como ideal de vida. A cidade logo percebeu suas aptidões e deu-lhe sua primeira tarefa: fundar de fato o clube de futebol de Ponte Nova já esboçado e com adeptos.

Surgia assim o Pontenovense Futebol Clube, o alvi-rubro, o baeta, que ele consolidou na sapataria, e que levou para onde ia e onde ele estava, lá vivia o PFC. É difícil imaginar por quais dificuldades passou aquele italiano para manter a chama dessa obra e quem vê hoje a praça de esportes e a belíssima sede social, orgulho da cidade, e não vê mais a figura de Hugo Saporetti, acha que aqueles bens nasceram ali, e nem se preocupam em saber da sua história. O Pontenovense foi Hugo, onde estava Hugo estava a sede, o futebol, os bens da agremiação.

Senhores de Ponte Nova, quem foi Hugo Saporetti, Emílio Garavini, José Golla, e outros esquecidos que andaram por suas ruas ainda poeirentas, e ajudaram a fazer tudo o que está plantado aí como por encanto? Talvez um ou outro reminiscente. No esquecimento estão todos que fizeram a história desta cidade, e sem títulos ou galhardões comprados passaram sem reconhecimento, e o tempo se encarregou de cobrir de poeira os seus nomes.

No que tange a minhas recordações de família, Ponte Nova serviu de palco para as ilusões, desilusões, aspirações e toda a realidade desses dois italianos, com caráteres tão distintos mas tão atraentes que a Itália me mandou para avôs.

Emílio, o bolonhês, trabalhador infatigável, profissional como poucos, veio para o Brasil fugindo da miséria em que vivia na Europa, sonhava enriquecer. Empreendedor, montou a Fundição Progresso, ensinou aprendizes e formou mecânicos. Enriqueceu como quase patrão e, previdente, aplicou suas poupanças em imóveis e construção de casas, teve na Praia armazém bem montado de secos e molhados, repleto de artigos importados. Seu prestígio, aliado ao porte elegante e imponente, junto ao povo humilde, chegou a tanto que, mesmo sem patente, era alcunhado de Coronel Emílio Garavini.

Já Hugo, ravenhano, foi um anarquista manso em plena Zona da Mata mineira. Mantinha sua família sólida debaixo da batuta firme e rude de vovó Ida, mas não desprezava uma mulherzinha que lhe fosse apetitosa e acessível, rezasse ela por qual credo fosse, e tivesse ela qual fosse a cor da pele e a condição social. Nunca teve horários para trabalhar, e nem empregados aos quais impusesse o regime de seis da manhã às oito da noite, como era comum então. Renegava o trabalho assalariado e vivia para o hoje e o agora. A intensidade com que dispunha o presente na vida, independente de família, comida, sobrevivência, era algo que chegava em nossa sociedade constituida à vagabundagem, à negligência e ao despudor. Mas vovô Hugo vivia alegre e para os outros.

O PFC ficou inteiramente em suas mãos durante mais de dez anos. Foi o factotum do clube: técnico, preparador, psicólogo, dono da bola, quem conseguia jogos, em sua casa realizavam as reuniões, eram lavados e remendados os uniformes e fornecidas comidas e alojamento para os jogadores em pior situação ou necessitados.

Vagabundo por princípio, lutava por interesses dos trabalhadores, haja vista sua participação em comissões reivindicatórias sobre melhorias nos salários, e redução para oito horas na jornada de trabalho. Foi também ele que organizou a primeira festa comemorativa do dia magno dos operários em Ponte Nova, o dia do Trabalho, com um memorável pique nique na Sombra das Éguas, que seria repetido por anos a fio, sempre com a sua presença marcante à frente. Como colocava acima de tudo sua fé de que os operários deviam comandar o mundo sem dar satisfações a governos poderosos e opressores, incentivou a criação de uma associação de cunho eminentemente operária: surgia assim a Sociedade Esportiva Primeiro de Maio, maior rival do PFC. Muitos vão botar em cheque esta afirmação. Mas acredito na origem da informação, pessoa intimamente ligada a vovô, e também por estar de conformidade com seus desejos: apoiar tudo que fosse bom para o tão explorado trabalhador.

vovô Emílio e vovô Hugo, duas personalidades diferentes, que por essas forças estranhas que o mundo tem, tiveram suas famílias entrelaçadas por por mais de uma vez, por três, com casamentos e outros bichos.

Ponte Nova uniu os Garavini e Saporetti. Uma Ponte Nova simples, agrária e boa, tão diferente da Itália deles.Voltemos a ela...

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