FAMÍLIA SAPORETTI

Tuesday, August 08, 2006

12 - A Cidade

Américo Saporetti Filho
Ponte Nova e seus morros, provavelmente nos anos 60, no alto à esquerda a matriz de São Sebastião.

Vista de parte da "Praia" e, paralela à curva do rio, a rua que dá acesso a "Copacabana", que fica à direita, escondida pelo morro da igreja.


Já é tempo, neste estágio da história, de falar em Ponte Nova, a cidadezinha da Zona da Mata mineira que recebeu e abrigou uma grande leva de imigrantes que lá chegavam com entusiasmo, vontade de vencer e grande desejo de 'fare l'America'.

Por justiça e dever, apresentamos Ponte Nova com urgência, antes que tome conta da narrativa sem lhe ser dada permissão, e aja como estes meninos, que contra as normas dos pais, invadem as conversas dos adultos, dando opiniões e palpites nem sempre oportunos, gerando conflitos e malestares, e terminando sempre em sova ou ralhação ou ambos ao pivete intruso e abelhudo.

Ou, quem sabe, se não a introduzirmos já, ela se retraia e fique de lado, observando os fatos acontecidos e rememorando em sua mente que o tempo não apaga, como pano de fundo, as pessoas que passaram indo e vindo por suas ladeiras, suas ruelas, e seus caminhos e picadas, sem dizer palavra, indiferente à sua própria história, que é também a dos meus avós, dos meus pais, meus irmãos, amigos e minha.

Ponte Nova, Ponte Nova, preciso falar de você com toda a espontaneidade e sensibilidade de um artista e todo amor de um filho.

Não me cabe julgá-la pois às cidades não se julga: são bonitas, aconchegantes e cultas ou ao contrário pecam por um ou mais de um defeito, mas todas são amadas por seus filhos, ou por aqueles que, vindo de longe se deixam estar ali e adotam aquele lugar como seu, e fazem do lugar o sol de suas vidas. Ponte Nova, minha formosa cidade, sempre foi meu universo infantil, meu paraíso adolescente e minha saudade de adulto.

O Piranga tortuoso e barrento é meu rio de referência. Tal rio não é tão piscoso como o Piranga, aqueloutro é mais largo ou mais raso. Como são belas as curvas do Piranga. A praia, na curva do rio, é bonita nas vazantes. Nunca vi uma enchente tão forte como a de 50, quase que o Piranga submergia toda parte baixa da cidade. E assim por diante...

Minha cidadezinha tem Palmeiras, um bairro inteiro, e tem também Copacabana, onde nasci, e que até hoje me causa confusões com o homônimo luxuoso e imponente do Rio de Janeiro.

Palmeiras, Copacabana, Pito, Olaria, Gavetão, nomes de bairros e locais de Ponte Nova, tão representativos quanto representam histórias e saudades fundadas em recordações.

Como uma cidade nos penetra tanto e nos envolve com seu aroma, com seus traços, com sua fragrâncias, com seus esplendores, seu sol, sua lua, seu amanhecer, seu entardecer, sua poeira, seus paralelepípedos, suas casas, seus portões? Como uma cidade tem o dom de nos envolver, misturando a estática dos seus morros com a dinâmica das suas pessoas, com seus dramas e suas comédias? Como Ponte Nova está dentro de mim...

Sei que seria outro se nascesse no Recife, ou em São Paulo, Araxá, Poços de Caldas, Ouro Preto ou Campinas. Mas nasci em Ponte Nova, às margens do Piranga, desde pequeno subi seus morros, desci em desabalada corrida as suas ladeiras e me acostumei a ver um horizonte próximo e a desconfiar de tudo que estivesse além daqueles morrotes, onde o sol se levantava e deitava num espetáculo diário de extrema beleza.

Ali viveram desde o início do século XX meus avós italianos que o destino tirou da bota da Europa e trouxe-os através de mil peripécias para o Brasil, direcionando-os até a Mata mineira para que em Ponte Nova se encontrassem, e o mistério da minha vida e da vida de todos da família se consumasse, como se uma imensa matriz matemática de numerosas equações com numerosas incógnitas fosse resolvida.

Deixemos os desígnios de Deus ou da Natureza e voltemos à cidadezinha. Digo 'cidadezinha'e já repeti várias vezes, porque ela para mim é como uma pessoa tão íntima e querida que se chama pelo nome afetivo, aquele que mais cala ao sentimento e à dedicação.

É perigoso, sei, chamar Ponte Nova de 'cidadezinha'. Certa feita um filho famoso, grande compositor de música popular e meu contemporâneo, o João Bosco, por um deslize destes que só o coração compreende, numa entrevista a emissora de tevê deixou escpar o diminutivo ao se referir à sua Ponte Nova - 'É uma cidadezinha perto de Ouro Preto' - e teve toda a opinião pública da cidade contra ele, tendo à frente os jornais da cidade, que em veementes artigos massacravam a falta de consideração do filho ilustre. O assunto rendeu e foi preciso que uma turma de estudantes universitários se reunissem e publicassem um manifesto bem escrito e bem fundamentado para que o malentendido caisse pouco a pouco no esquecimento.

Fica o fato e o meu respeito apesar de chamá-la de cidadezinha. Uso 'cidadezinha' para ela como chamo de mãezinha a minha mãe. Ela gosta muito e, acredito, minha terrinha também. Aonde fica Ponte Nova?

Ao norte de Viçosa, Ubá e Juiz de Fora. A leste de Mariana, Ouro Preto e Belo Horizonte. A oeste de Caratinga, Teófilo Otoni e Governador Valadares. Altamente influenciada pelo Rio de Janeiro, a Capital da República, nos costumes, na moda e na cultura - só chegavam lá, e assim mesmo por trem, jornais e revistas da antiga sede da administração federal, há uns trinta ou quarenta anos atrás.

Com Juscelino no governo do Estado de Minas, foi ligada a Belo Horizonte por estrada de rodagem, hoje totalmente asfaltada, mas que pelos idos de 60 tinha trechos extensos que só eram transitados com o auxílio de tratores nas épocas de chuvas. Praias não tínhamos quando era criança, mas o pontenovense de uns tempos para cá descobriu o Espírito Santo e com isso dominou Iriri, Marataizes, Guarapari, garantindo a sua mais próxima saída para o mar, e o espairecer do corpo e do espírito.

São Paulo capital e São Paulo estado são como o que se conhece mas não se entende bem para o povo de minha cidade. No meu tempo de menino, anos 50, tinha por São Paulo um medo terrível, e esta cidade me aparecia em sonhos cheia de carros acelerados e buzinando numa azáfama incrível e desordenada, com pessoas impossibilitadas de atravessar as ruas e que de tão grande constituia um emaranhado profundo de carros, pessoas e prédios, difícil de entender.

'Não sei como se pode viver naquela cidade de loucos' - havia sempre conterrâneos que voltavam horrorizados e vociferando a quatro cantos contra aquela vida corrida.

Times de futebol que despertavam interesse e fanatismo na cidade eram do Rio: Flamengo e Fluminense, assim como as famosas novelas da Rádio Nacional do Rio, envolviam as mocinhas casadoiras, e as mulheres mães extremosas e esposas distintas, com emoções cheias de lágrimas e soluços, com as costuras à mão ao lado dos imensos rádios, a válvula com mil barulhos e chiados.

Corria dinheiro por todo o canto da cidade. As fazendas de café e cana prosperavam durante anos e mais anos fazendo fortunas, dignificando famílias e criando coronéis da Guarda Nacional, que tantas histórias trouxe ao nosso folclore e à nossa tradição.

Houve época que cinco usinas de açucar moiam cana para açucar e álcool. Até hoje a cidade mantém o caráter aristocrático daqueles tempos de apogeu e bonança.

A terra está cansada mas a cidade ainda vive envolta em um véu de pompa e de fulgor.

2 Comments:

  • At 5:51 AM, Anonymous Anonymous said…

    "A Cidade" é capítulo, não conta pro texto, ou é pra ser usada como interlúdio, sem numeração mesmo?

     
  • At 6:24 AM, Blogger alex saporetti said…

    oi itamar, a cidade é capítulo sim, eu me esqueci de numerar ontem à noite quando publiquei, mas já fiz a correção. obrigado pelo toque...

     

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