FAMÍLIA SAPORETTI

Tuesday, July 11, 2006

8- Emílio ama... e sofre.

Américo Saporetti Filho

Emílio nunca misturou vida profissional com vida íntima, e assim pode ser o grande e próspero mecânico comandante da Fundição Progresso a par dos incontáveis baques e traumas sentimentais que sua vida amorosa estaria sujeita. Em 1895 meu avô rico foi à Itália, Bologna, buscar sua noiva Júlia que o aguardava há mais de três anos. Casou-se com pompas de verdadeiro fidalgo e deixou de queixo caído os que o taxaram de aventura burlesca a vinda para o Brasil.

Júlia, italiana bonita, cabelos pretos cacheados, parecia uma madona de camafeu, tão branca era sua tez. Pequenina do tipo mignon, disfarçava um pouco usando saltos altos e cabelos penteados altos. Estas pequenas estratégias iam por água abaixo quando estava junto de Emílio, alto, forte, porém extremamente gentil com sua "piccola moglie".

Como era comum e de bom tom naquele fim de século, sem anticoncepcionais, quando as famílias giravam em torno de cinco filhos em média, Júlia engravidou logo e o lar de Emílio se encheu de alegria para esperar o primogênito. A gravidez foi normal: enjôos, boca ruim, desejos, coisas comuns quando a mulher está fabricando um novo ser que lhe extrai as vontades e lhe põe outras. Os nove meses de gestação voaram como voam as flechas tão ligeiras que atingem o coração da presa. Emílio, dividido em dois, vivia duas vidas: a da fundição, aonde como factótum era pessoa indispensável requisitado como um médico a toda hora e para todo lugar, e o Emílio marido e futuro pai, com o filho crescendo na barriga da mulher a se mexer e se revirar, marinheiro de primeira viagem sem experiência e sem saber o que fazer nas ocasiões mais simples e comuns.

Tranquilamente dedicava à boa Júlia extremos de gentilezas e bem estar, para com isto inclusive abrandar o choque da adaptação ao Brasil.

O dia do parto foi triste para o forte Emílio. Sua pequena Júlia não chegou a ter o bebê tão aguardado. Vieram as contrações, chamou-se a parteira, o menino tentava nascer, a mãe forçava para que ele nascesse mas a bacia dela era estreita ou a cabeça do bebê era grande demais. Os dois morreram de maneira brutal, ceifados pelo amor, um encravado no outro. Não se fazia cesariana naquele tempo: os meninos deviam nascer pela vontade de Deus.

Emílio estava agora viúvo e triste.

A recuperação dele só foi possível pelo trabalho árduo na fundição. Absorto nos afazeres esquecia durante o dia a meiga Júlia e o filho que, de uma vez, perdera. Sòzinho no quarto escuro, quantas noites não dormira divagando sobre a razão da vida e a tênue divisão que a separa da morte.

É comum nos estados mórbidos encontrar-se respostas a muitas perguntas que gravitam nossa órbita sem solução nos tempos de alegrias e paz. Vovô Emílio viveu a morbidez da morte de Júlia com seu filho se debatendo em seu ventre durante um longo período de sua vida. Deixou de gritar com os funcionários, esqueceu-se que a fundição funcionava com seus pontapés. Nauseado, meditava muito quando devia agir, e contra seus princípios vivia do passado, esquecia o presente e nem cogitava do futuro.

Salvou-o seu cunhado Innocencio (nesta época Innocencio já se casara com a irmã Emma) quando chamou-o às falas intimando-o a levantar a cabeça e continuar a vida. E acrescentou que isto devia querer Júlia aonde estivesse.

Ainda foi Innocencio que apresentou vovô a uma filha da terra brasileira de nome Anita, irmã de uma tal Satana. Dizem que Anita lembrava Júlia, cabelos pretos, tímida e pequetita. Emílio renasceu e tornou com intensidade à vida.

Não esperou muito e estava casado de novo. A alegria completou quando a barriga de Anita começou a crescer e ela pudicamente anunciou que lhe daria em breve um filho.

Havia ainda de não ser esta a felicidade completa deste italiano de boa cepa. Anita também morreu de parto depois de luta desesperada para fazer o filho nascer. Nasceu, viveu algumas horas mas não resistiu. Um meninão bonito, cabeça grande e perfeitinho.

O enterro dos dois, caixão roxo e caixãozinho branco, vovô acompanhou cabisbaixo, olhar fixo num ponto imaginário no nada, perplexo por tanta crueza de vontade divina.

"Será que Deus existe? Se existe porque me maltratar tanto?"

Raciocinava: "Será que este é o preço que pago pela vingança que papai Rinaldo infringiu contra um padre de Bologna? É bem possível, é bem possível".

Chorar Emílio não chorou, mas sofreu sem desabafo e voltou para casa com o coração estraçalhado.

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