FAMÍLIA SAPORETTI

Saturday, August 26, 2006

16- P.F.B.C.

Américo Saporetti Filho


A diretoria original do "Pontenovense Foot Ball Club", Hugo o terceiro da direita para a esquerda
O campo do Pontenovense, como era naquela época


_'Helás, figlio da puta'_ e seguia-se à expressão cortês um bom tapa de mão espalmada nas costas do amigo comprimentado.

Assim Hugo subia e descia a rua Municipal (hoje Benedito Valadares) saudando a todos, incentivando com sua extremada alegria de viver. E se era assim na rua Municipal, o era também na rua do Pindurico, na rua da Praia, na do Gavetão e por todas as ruas e lugarejos de Ponte Nova e adjacências.

Existem pessoas na presença das quais é impossível ficar indiferente. Hugo era uma dessas pessoas. Aonde aparecia a vida palpitava intensamente, e todos, ricos e pobres, cultos e analfabetos, patrões e empregados, participavam das situações que se apresentavam com vibração, arrebatamento e interesse. As situações se formavam como naturais e perfeitamente cristalinas. Porém bastava Hugo ausentar-se e tudo era envolto em uma estranha monotonia que por vezes acabrunhava e irritava.

Foi assim com a efetiva criação do P.F.B.C._Pontenovense Foot Ball Club. Quando Hugo chegou a Ponte Nova em abril de 1912, o clube oficialmente já havia sido fundado por alguns pontenovenses no ano anterior. Mas na prática não passava de uma idéia ainda borbulhando na cabeça destes jovens que gostavam do 'foot ball'.

De uma hora para outra, sem que ninguém lhe pedisse ou lhe tivesse outorgado esta prerrogativa, ei-lo empunhando a bandeira do PFBC, e como factótum de um ideal levando esta bandeira até onde uma vida de dedicação sem medir sacrifícios pode levar.

O PFBC, mais tarde PFC (Pontenovense Futebol Clube) se resumia em Hugo e era todo Hugo. Técnico do time, com aquele seu jeito gentil, exigia a presença de todos os jogadores aos treinos duas vezes por semana, mesmo que tivesse de convencer patrões para liberarem mais cedo os funcionários-atletas defensores do alvi-rubro.

E convencer os patrões significava sempre uma esculhambação, misto de exortação aos brios, palavrões com sentimentos nobres. Ninguém negava pedido de Hugo Saporetti e ninguém considerava aquele linguajar aparentemente obsceno e chulo como desmoralizante e grosseiro, era a forma própria de se comunicar com os amigos daquele imigrante tão cheio de vida e ideal.

De início o Pontenovense era só futebol, e mesmo assim sem local definido para seu campo. Servia qualquer lugar plano onde pudessem armar uma trave e jogar bola. Até que arranjaram o campo do Engenho, que durante muito tempo foi o campo oficial do PFC, na fazenda do Engenho, em local cedido pelo dr. Renato Marinho. A drenagem da área foi feita em regime de mutirão por Hugo, seus filhos e alguns pontenovenses fanáticos que começavam já a surgir; a limpeza, a plantação da grama após o corte das árvores, e por fim a colocação dos gols e a marcação do campo. Desta forma iniciava-se a consolidação de um ideal, com o campo de empréstimo para os treinos e as grandes competições. Após o primeiro jogo oficial do Pontenovense no campo do Engenho, Hugo não cabia em si de contentamento pela primeira fase conquistada e pela vitória na partida.

Contam que neste domingo reuniu-se em casa com todos os jogadores e regado a vinho tinto e gordurosos, comemoraram até alta hora o grande feito. Contam também que lá pelas tantas, Ida, que se mantivera solícita durante toda a comemoração, apesar das crianças pequenas a todo momento chorando, e precisando de cuidados, não se conteve, e àsperamente colocou todos na rua sem ouvir os apelos do seu homem já bêbado, e de toda aquela turba de fanáticos. O final desta festa teve de ser pelas ruas, que sempre para Hugo eram como sua casa.

O Pontenovense era a segunda paixão de Hugo, e vó Ida sabia disso e convivia com este amor do seu amor.Tanto que se desdobrava em manter os uniformes bem lavados e alvejados, branquinhos, passados. Lavava-os na beira do rio em água corrente, e depois colocava-os ao sol para quarar, e então dava-lhes a última enxaguada e deixava-os a secar. Passava-os com carinho e dedicação, remendava e restaurava-os, deixando-os como novos. Também hospedava jogadores novos que não tinham onde ficar, dando-lhes comida, cama, roupa lavada. Na sapataria eram feitos os remendos na única bola, importada, que servia aos treinos e jogos oficiais.

Nota-se que a família de Hugo respirava Pontenovense no trabalho, na rua, e no lar e todos eles tornaram-se torcedores, jogadores e defensores fanáticos das suas cores e ideais.

Sede? Não havia. Reuniam-se os 'baetas' (como eram conhecidos) inicialmente na sapataria de Hugo, depois em casa de algum dos integrantes, mais tarde alugaram pequena sede onde promoviam reuniões e faziam bailes animados por sanfonas, rabecas, violões. Por vezes Hugo era obrigado a transferir a sede com os poucos móveis, documentos e alguns troféus para sua casa por falta de pagamento do aluguel. Dessa forma mudava-se o centro de decisões para debaixo do teto de quem já tomava todas as decisões.

A fibra deste anarquista italiano fortaleceu o Pontenovense e salvou-o várias vezes da extinção total e fez deste clube, durante toda sua vida, a glória do esporte de Ponte Nova. Hoje quem vê e visita aquela belíssima sede em estilo colonial no centro da cidade, em plena avenida, junto à igreja, à prefeitura, aos cinemas e às melhores lojas, e também quem visita o conjunto esportivo com piscinas, campo de futebol, volei, basquete, na Vila Oliveira, nem de longe pode imaginar o que representou para Hugo e sua família, concretizar esta obra ou manter a chama viva do ideal. Mais tarde vieram juntar a eles homens notáveis como dr. Ordalino dos Reis, primeiro presidente oficial do PFC, Juca Fonseca, o grande benemérito e muitos e muitos outros que, na corrente de construir com todo o sacrifício o patrimônio social que recebemos de mãos beijadas, esquecidos dos suores e lutas.

Quando meu avô parou em Ponte Nova (e com este gesto deu um basta à vida nômade) com mulher e três filhos, mal podia imaginar o papel importante que teria naquela cidade, o inexplicável futuro. Um futuro que, ao se tornar presente, mostrava que seus ideais tinham de ser sempre levados em contato com o povo, dando prazer a todos, sem ilusão política, nem de bens materiais, levando-os a ter um pouco de bem estar, e motivação pela vida e desvinculando-os dos apegos do Estado e da sociedade.

Previu Hugo bem mais tarde que sua obra seria elitizada, quando mostrou certa apreensão com a validade da construção da sede, por ser, no seu modo rude de expressar, porém cheio de verdades, uma barreira aos pontenovenses de peito roxo: '_Os filhos de Antonio Bodoque, por serem mulatos, não vão poder entrar no clube. Vamos perder a nossa integridade. Por isso me preocupa a construção da sede própria!

A sede foi feita, pois a obra de Hugo já tinha vida própria, e não mais dependia dele. Neste ponto ela transcendia suas vontades. Nem ele ao desabafar tinha forças para brecar o desenvolvimento do seu PFC.

Mas a razão era de Hugo: seu clube hoje é elitista e preconceituoso. Nenhum dos filhos dos pontenovenses de boa cepa, por serem pobres ou negros, fazem parte dos seus quadros sociais e muitos pontenovenses que batalharam ombro a ombro para erguer tudo que existe de PFC, foram banidos em vida por escrúpulos e pudores de sociedade.

Mas estamos avançando demais os fatos, e atropelando. Faz-se necessário voltarmos.

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