FAMÍLIA SAPORETTI

Wednesday, September 06, 2006

18- A Família Paralela

Américo Saporetti Filho

Um dos times do Pontenovense. Nesta foto, reconhecidos, estão Américo, o quarto em pé da direita para a esquerda, e Líbero, o primeiro agachado à direita. Quanto aos mulatos quem sabe...?


_'Esse italiano tem muita responsabilidade. Bem cedo, de madrugada, já está de pé e vai célere para o trabalho.'_ diziam e pensavam os vizinhos ao verem Hugo sair de casa cedinho, bem antes do sol nascer. Acontece que não era bem assim. Deixava o calorzinho da costela de vó Ida para se acomodar até de manhãzinha no corpo quente da negra Camila. Ao se ausentar de sua casa àquela hora da manhã, pronto para o trabalho, vovô era o homem zeloso de suas funções de chefe de família, responsável por filhos e mulher que dependiam do seu suor e, tempo mais tarde, ao entrar do outro lado da cidade no casebre de Camila, era o homem sem escrúpulos que, mulherengo, mantinha uma família paralela para escândalo de todos que sabiam. Vovô teve com Camila cinco filhos negros de nariz afilado e cabelos lisos, sendo quatro homens e uma mulher. São Saporetti de sangue que estão espalhados por este mundão que é o Brasil.

O marido da Camila, carcereiro, fazia constantemente plantões noturnos na cadeia, lá no Gavetão, por escala ou ainda em troca de alguns cobres por colegas. Assim a mulher do carcereiro passava noites e mais noites tendo de amargar sua vontade sòzinha, o calor a lhe queimar. Vovô conheceu Camila num dos primeiros carnavais que passou em Ponte Nova, 1913 ou 14 ou 15, por aí.

Antes devemos falar o que era o carnaval do vovô. Pois bem, para este italiano o carnaval era alguma coisa assim como dedicação absoluta à folia.Descalço, sem camisa, e com um pandeiro na mão, com o qual batia na cabeça dos conhecidos, seguido do tradicional 'Hellás, figlio da puta', vovô pulava pelas ruas da cidade os quatro dias sem sequer aparecer em casa. Despedia-se de vovó na sexta e só regressava na manhã de quarta, suado, sujo, cansado e esbodegado, querendo cama para se recuperar.

Neste carnaval de encontro com a Camila ele não brincou como queria. Encontrou-a na sexta à noite, enrabichou-se logo por aquela negra ancuda e de carnes rijas, e amou-a os quatro dias de carnaval, enquanto o carcereiro cuidava dos presos e dos bêbados. Começou desta forma em carnaval a união secreta que se estenderia por quase quinze anos. E os filhos foram chegando, primeiro Gilson, depois Caquinho, mais tarde Fúlvio, Alberto e por fim 'Mulatinha', uma morena muito bonita que se casou muito bem em Belo Horizonte.

É de se estranhar que relação deste tipo permaneça incógnita por tanto tempo numa cidade onde todo mundo conhece todo mundo e todos sabem com minúcias tudo o que diz respeito à vida de cada um, como era e ainda é em Ponte Nova. É de se estranhar também que o carcereiro não obstaculizou nem desconfiou da transação da mulher, quando, como por um passe de mágica, seus filhos começaram a nascer tão diferentes dos anteriores, com traços mais finos, cores esmaecidas e cabelos anelados suavemente ou lisos. Contam que o carcereiro, que Deus o tenha em bom lugar, era corno manso e que não se importava em dividir a mulher com o italiano, desde que ele contribuisse com comida e dinheiro para as despesas. Não sei como isso acontecia, mas fazia que não via nem ouvia as travessuras da sua fogosa mulher dentro do seu quarto, na sua cama, enquanto amansava seus presos nos plantões do Gavetão.

Talvez por estes motivos nunca voltou para casa de supetão, nem quis flagrar o impulsivo italiano com sua quente mulher. Aceitava os chifres e há quem diga que lhe ficavam muito bem, saindo ponteagudos daquela carapinha bem densa. Quanto a Camila, explicava a Deus e todo mundo a melhoria súbita da raça, em virtude de uma prática simples que usava em todas as gravidezes _'Pena eu ter tido conhecimento depois dos dois primeiros, vejam como são diferentes'_ e esta prática consistia em tomar em todas as luas cheias durante a gravidez no quintal escuro, chá de chapéu de couro quente a não mais poder, e sem açucar. Quem não conhecia suas ligações com o italiano acreditava, tal a convicção de quem crê com que a negra falava na simpatia.

_'Santo remédio pra apuro de raça, tem inté caso de fio de nego cum nego que ficou branquinho sem sê sarará'_ completava num linguajar típico. Mas quando vó Ida soube das estripulias do seu "vecchio", foi um Deus nos acuda. O sangue italiano pulou para suas faces, depois subiu para a cabeça, não se conteve. Aninhou uma faca de cozinha debaixo da saia e rumou a tirar satisfação com a Camila em frente à casa dela, com disposição de por fim àquela putana de cor. A ação do Odolga, correndo em desabalada carreira na frente e avisando a pobre Camila do perigo que vinha em sua direção, e depois acalmando a mama Ida, evitou uma possíval trágica lavagem da italianíssima honra feminina ferida e ultrajada.

Após este incidente, os registros dão conta que o fogoso Hugo não mais frequentou com assiduidade costumeira de antes a casa da boa Camila, mas também informam que não deixou de manter contato com ela, para matar as saudades que lhe queimavam o corpo, e também para poder rever e abraçar seus filhos escurinhos, que apoiou e trouxe sempre junto de si enquanto pode. Eram bons jogadores de futebol e Hugo trazia-os ligados ao PFC.

Numa partida de futebol lá no campo do Engenho, Hugo escalou oito filhos para formar o elenco do PFC: quatro da vovó Ida e quatro da Camila. Um fato histórico, talvez único na coletânea de fatos pitorescos que o futebol tem. Os oito eram bons jogadores de futebol e a partida orientada tècnicamente por Hugo transcorreu em alto nível e a vitória veio premiar a arte dos oito irmãos, quatro a quatro por parte de pai.

Mais tarde, alguns anos depois, Camila e todos se mudaram para Bê Agá. Sua situação em Ponte Nova estava se tornando insuportável.

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