FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, September 25, 2006

20 - Pinota ataca novamente...

Américo Saporetti Filho

Havíamos deixado vovô por volta de 1914, entregue ao ano mais cruel de sua vida. Pinota voltara da Itália em 1911 com Beatriz, Toni e Reinaldo. Deixara lá os gêmeos Emma e Emilédio aos cuidados da cunhada Emma e da sogra Seraphina.

Das aventuras da Pinota na Itália, nada se soube ou nada se apurou. Ficou lá dois anos em tratamento de saúde por anemia, depois do parto dos gêmeos. Mas ao voltar ao Brasil encontrou em Brás Ferrari o amante jovem, decidido e impulsivo que seu fogo de mulher desejava. Tudo leva a crer que o caso amoroso Brás-Pinota começou logo após sua volta, pois foi nessa época que toda trama de morte foi armada contra o bom e sensível Emílio.

Vovô foi marido traído por um bom tempo sem saber. Amava e dedicava à sua adorada mulher todos os confortos e delícias que são possíveis a um coração transbordante de felicidade conjugal. Pinota aceitava tudo: jóias, roupas, exigia e conseguia viagens ao Rio para compras e descanso, e até uma loja de artigos importados Emílio colocou para sua 'piccola moglie' na Rua da Praia. Com muito cuidado e, talvez, colocando em risco a grande amizade que os unia, o compadre Saltarelli alertou vovô para as travessuras da sua fogosa mulher. Era voz corrente na cidade que ela tinha um caso fora do leito conjugal com um desqualificado. Vovô levou um choque, não queria acreditar, chegou em instantes a perder a razão e desrespeitar o seu caro compadre de tantas lutas e ajudas mútuas. Mas parou, perdeu a fala, tomou algumas cachaças e ficou ali como a esperar que uma síncope viesse levá-lo, e com isso evitasse que tivesse que suportar toda esta humilhação. Mas nada aconteceu e teve que encarar de frente mais este trauma que se abatia sobre ele e toda sua família.

Não podia admitir que a mulher da sua vida pudesse agir de maneira tão vil. Ser corneado assim sem mais nem menos. Que saiba, nunca havia faltado as suas responsabilidades como marido. O compadre Saltarelli tinha razão, existem mulheres que não se contentam com um homem só, e minha querida Pinota, seria uma destas?

Ruminando esta raiva que só fazia aumentar dia após dia, vovô emboscou o rival na praia, próximo à ponte de madeira, e pediu satisfação. O amante ironizou dizendo que os coronéis devem pagar e os jovens devem amar as mulheres dos coronéis. Brás então recebeu a maior surra de sua vida que lhe impôs aquele 'velho' acostumado a manejar a marreta e a moldar o ferro em brasa. Na fuga da surra se desequilibrou e caiu barranca do rio abaixo, quebrando uma das pernas. Daí para a frente mancou sempre, até o fim dos seus dias, não se sabe onde, uma perna maior do que a outra.

Vovô sovou o sócio de alcova, mas não deixou a mulher, mãe dos seus filhos. Ela sabida, sem querer perder a vidinha sossegada, colocou toda a culpa no Brás que, vilão sòzinho na história, não a deixava em paz, e a perseguia insistentemente com propostas. Mas garantia que não cedera um isto, nem queria nada com ele, ou com quem quer que fosse. No seu coração só havia lugar para o marido querido. Vovô aceitou as desculpas, daria a ela uma chance a mais, e também cioso das responsabilidades com os filhos e a sociedade, espírito conservador e altamente respeitador das regras sociais. Separação só traria o desajuste dos filhos, resolveu tentar a conciliação: '_Que dizer aos filhos em formação? Que a mãe é adúltera? Como reagirá a sociedade em relação a eles e a nós todos? Não posso me separar dela.'

Continuou a se sentar à mesa com os filhos e a mulher, e a dormir com ela na mesma cama. Tentou reconstruir a sua vida, apesar de todas as dúvidas e dos cochichos e risinhos que passou a ouvir e ver à sua passagem.

Vovô procurou ser complacente, mas outros fatos mais revoltantes puseram fim inapelavelmente a todo sacrifício e a qualquer poderação.

Naquela época a sociedade julgava e lançava a pecha sobre todos da família que tivesse no seu seio um que cometera deslizes. Os erros dos pais eram transmitidos aos filhos e netos simplesmente por terem sido cometidos pelos pais e avós. E as mulheres sofriam o escárnio de forma muito mais traumatizante, pois a mesma sociedade sabia aproveitar da fragilidade feminina com perfeição obscena. Vovô quis ser conciliador e aceitou as ponderações da esposa quando todos os fatos demostraram que ela era culpada e mentia, só para salvar as aparências e por que não dizer porque ainda a amava e não podia viver sem ela. Pior para ele. De nada adiantou dourar a pílula, ela continuou amarga.

A mulher adúltera então maquinou a liquidação daquele 'velho', pai dos seus filhos (ao menos nunca colocara em cheque a paternidade) e que a sustentou, amou e deu lugar ao seu lado na sociedade. Contam que Pinota se juntou a Maria Preta, sua empregada, confidente e mulher de recados, e planejaram a extinção do coronel.

O plano era simples: envenenamento gradual por vidro moído. Em doses homeopáticas, vovô começou a ingerir de mistura na comida, vidro pulverizado e muito bem dosado, segundo o engenho e a arte de Maria Preta, nega do candomblé e da macumba.

O resultado começou a aparecer sutilmente com um mal estar generalizado, moleza nos braços e pernas.

Diagnóstico médico: Polinevrite ou Polineurite.

Diagnóstico caseiro: Trama Diabólica.

Dona Emma foi informada na Itália do que estava acontecendo pelo irmão de Pinota que descobriu tudo. Na carta este irmão informava que se ela quisesse, ele, Vicente, se prontificaria a tirar vovô de lá e levá-lo para a Itália para tratamento e convalescência. Assim foi feito e Emílio, tão logo se viu fora das mãos de Pinota e da sua macumbeira, começou a recuperar-se.

Tratado em Bologna, melhorou ràpidamente, mas resolveu convalescer por quase um ano. Aquele italianão com coração de criança aproveitou para despedir-se da sua Itália grandiosa. Sabia que não mais voltaria lá.

Neste período, sua casa, aquele sobradão bonito na Praia que a enchente de 50 levou abaixo, era visitado sistemàticamente pelo manco Brás Ferrari. Na casa viviam além de Pinota e a preta, tia Beatriz, mocinha de quase quatorze anos, tio Toni, um meninão de doze anos e tio Reinaldo com nove anos. Os gêmeos Emma e Emilédio estavam na Itália com a tia e a avó. Vovô fora em tratamento, o campo ficou livre e o esbaldar foi total. Julgavam que vovô não voltaria mais e que morreria por lá.

Dizíamos que o manco começou a frequentar o casarão descaradamente. Os amigos de vovô não se continham em raiva da mulher e todos se apiedavam da família e dos filhos.

Mas ninguém podia imaginar o trauma e o drama que os filhos, principalmente Beatriz e Toni, estavam vivendo. Já não dormiam, aguardando a hora em que os degraus da escada iriam ranger de maneira desuniforme, pé forte, pé fraco, no andar irregular e descompassado dos mancos. E inevitàvelmente acontecia, e assim a casa vibrava e arrepiava. Toni e Beatriz, sem o apoio do pai, da tia ou da avó se abraçavam, os corações pulando nos peitos, e aflitos, ficavam naquela posição, quietos, supondo, sufocante a apreensão do mal dentro de casa. Se dormiam, quando caiam de cansaço, o sono vinha atribulado, cheio de fantasmas, medos, lutas febris. O alívio se realizava quando os degraus rangiam passo de manco em sentido da saída.

Mas era um alívio em suspense. Será que virá esta noite? Ou será nesta? A apreensão invadia, traumatizava, dilacerava os espíritos em formação daqueles dois. Reinaldo ainda novo, dormia tranquilo e sem receios. A notícia da volta do pai foi o bálsamo que faltava àquelas crianças. Beatriz, para acalmar Toni, confidenciou a ele que contaria tudo ao pai quando chegasse.

Maria Preta bisbilhoteira ouviu tudo e contou para a patroa. Em menos de uma semana o enxoval de Beatriz estava pronto, e lá ia ela para Mariana, interna no colégio das freiras.

Vovô voltou rejuvenescido e dona Emma, a forte e decidida dona Emma, poupou o irmão de se encontrar com a mulher, cuidando de tudo. Emílio foi morar na casa de dona Emma, ao lado da Fundição. Exigiu que Pinota lhe entregasse os filhos dele para que ele os criasse como pai.

Vieram Beatriz, Toni, Reinaldo. Emma e Emilédio já estavam com ele. Pinota, nesta época grávida de um filho de Brás, cedeu a tudo com a franqueza dos imorais. Exigiu que vovô desse para ela a casa do Vai e Volta. Assim foi feito. Pinota morou na casa que anos mais tarde, talvez uns 35, papai compraria para nós, e que até hoje mamãe e todos nós quando vamos a Ponte Nova moramos lá. Foi lá também que Pinota teve o filho do Brás e foi lá também que, por um descuido dela, este menino morreu afogado na banheira preparada para o banho da mãe.

Esta separação trouxe no seu bojo o trauma para uma família. Mãe adúltera e pai corno. Os filhos, bem... os homens eram admitidos com mais aceitação na sociedade, mas as moças parece que recebiam nas testas estampadas em letras garrafais com todos os esses e erres o carimbo do erro dos pais, e se tornavam inferiores, filhas de fulano e de sicrano, vamos em frente minha gente, que ali deve dar pé, vamos lá tirar uma casquinha.

Vovô Emílio proibiu com a força da sua moral aos filhos qualquer contato com a mãe:_'Podem recebê-la, não posso proibir, pois ela é mãe de vocês, mas que seja da porta para fora. Não admitirei, enquanto for vivo, que a deixem entrar em suas casas. Para mim ela morreu e não quero o nome daquela mulher nunca mais pronunciado por vocês...'

Incontinente vovô não quis saber de desculpas e naquele ano entrou e conseguiu o desquite e a posse dos filhos. Era o ano de 1916, Pinota se conformou com a partilha dos bens e foi viver sua vida. Ainda teve duas filhas e um filho de pais diferentes.

Vovô, ah meu pobre avô, nunca mais pronunciou o nome daquela mulher que foi sua deusa, e por quem fez tudo no mundo, até o mais baixo papel de marido traído; que mágoa, que ódio em relação a ela deve ter levado para a sepultura.

A família absorveu o impacto nefasto nos filhos que o transmitiam aos netos, e que só agora nos bisnetos está se diluindo e sendo menosprezado como fato natural, e que acontece nas melhores famílias. Mas também hoje os tempos são outros. Êta sequelazinha que fez mal...

1 Comments:

  • At 3:34 PM, Anonymous Anonymous said…

    44 ;)
    ita

     

Post a Comment

<< Home

 
how to add a hit counter to a website