FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, March 05, 2007

29 - A Sorte de Emma Estava Lançada

Américo Saporetti Filho

A beleza de Emma


Os gêmeos Emma e Emilédio na adolescência


Tia Emma sentia-se a filhinha do vô Emílio. Por ser caçula e também por sua beleza, sua vivacidade, seu destemor em enfrentar a vida, ela conseguia do bom homem, seu pai, tudo o que quisesse, fosse daqui ou de muito longe, aquilo que fosse concreto, e muita coisa que de tão abstrata podia ser considerada transcendental.

E a esta filha ele incumbia todas as tarefas que um pai gosta que a queridinha do coração faça, talvez um pretexto para o contato de todo dia, com a possibilidade do encontro, da conversa, do cafuné.

À Emminha, como a chamava carinhosamente, estavam afetos os trabalhos de engraxar suas botas, de costurar suas camisas, de polir suas bengalas, de pregar os botões soltos de suas roupas, de ajeitar seu terno e de dar um dengo à pergunta de toda manhã: _"Emminha, estou bonito? A gravata está no lugar?"

Cresceu assim a caçulinha, badalada, mimada, o docinho de coco que todo mundo gostava, admirava, e satisfazia as vontades. Para o papai então, a eterna criança, a menina que não crescia nunca. Mas Emma foi tornada moça, a mais bela da Ponte Nova do seu tempo, e também a mais cobiçada.

Em sua cabecinha de menina moça do primeiro quarto deste século, vibravam em êxtase os desejos de um príncipe encantado que pudesse fazê-la extremamente feliz. Cedo começou a procurar com ansiedade este príncipe, e, inexperiente, se envolveu em inúmeras aventuras pouco recomendáveis. Numa delas, enamorou-se de um escroque de apelido 'Tampinha', por ser baixo e troncudo, tendo com ele relacionamento escandaloso para a época, e que deixou de queixo caido a tradicional família pontenovense. Com a rigorosa interferência do pai e dos irmãos, que chegaram a prometer uma surra no namorado, foi obrigada a deixá-lo de lado, após inúmeros encontros furtivos e, como despedida, entregou-lhe retratinho com dedicatória, em que jurava amor eterno, e lembrava momentos de prazer nunca vividos antes.

Gumercindo Vieira, partidão por ser honesto, e ainda por cima rico, se enrabichou por ela tempos depois, e queria a todo custo tê-la como namorada, mas logo tomou conhecimento através do próprio 'Tampinha' do que acontecera no namoro entre eles, e viu e leu com rubor a dedicatória no retrato. Deixou então de cortejá-la, e foi procurar sua cara metade em outra mais afeita à ordem e aos costumes vigentes.

Este fato nem de longe afetou a fogosa Emma que via no Gumercindo um desprovido de sabor, um ser insípido, que nunca a faria feliz, por mais que ela se esforçasse. Desta forma Emma continuou sua procura, cheia de experiências sem se afetar pelos apupos ou aplausos da platéia. Queria ser feliz. E procurava ardentemente com seu gênio arrojado e, quem sabe, apoiada numa carência afetiva de ter vivido uma infância sem mãe, e sabendo das estripulias de sua querida Pinota, procurava sim um lugarzinho de paz, junto a um homem que a entendesse e a envolvesse na aura de amor e prazer.

Todo baile, toda festa, fazia-se presente ofuscando a todas; nos casamentos deixava a noiva na penumbra da luz que emanava, luz de vida, de juventude e de desejo.

Estava neste auge quando acompanhou o pai ao Rio onde seria submetido à segunda operação da próstata. Foram ela, o velho coronel Emílio e a tia, dona Emma.

Ficaram no Hospital São José durante setenta dias, o vovô internado, fazendo exames e mais exames. Vieram a saber depois que todas as desculpas dadas pelo médico para adiar a operação não passaram de mentiras bem urdidas para encobrir o desespero dele com a esposa doente, e sua incapacidade momentânea de portar o bisturi com tamanha fatalidade, prestes a envolvê-lo.
Desta maneira suspendeu todas as cirurgias e ia dando paliativos aos pacientes. Neste período, só teve olhares e desvelos para sua mulher, que estava sobre o leito, vítima que exigia cuidados extremados. Graças a Deus ela restabeleceu-se de maneira satisfatória e então vovô pode ser operado com sucesso.

Nos corredores do hospital, Emminha conheceu o grande amor da sua vida, um rapaz estudante de medicina, com a mãe internada naquela mesma casa de saúde, e vizinha de quarto do vovô.
Levava sempre peixes frescos para as irmãs - seu pai era pescador - e com seu gênio extrovertido e brincalhão, conseguiu ganhar a simpatia, a confiança e a admiração de todas elas.
Entre Emminha e Mário surgiu devagarinho um amor que foi aumentando a cada dia, a cada passeio. Até hoje, quando a velha Emma, de quase oitenta anos, fala no Mário, seus olhos brilham, faiscam, e sua voz fica trêmula, e o interlocutor parece estar diante de uma normalista contando casos de amor furtivo acontecido hoje, agora. O tempo não passou para este amor de tia Emma; o tempo não passa para as coisas do espírito.

Enquanto a Emminha cultivava seu romance pelo Rio maravilhoso de 24, a italiana dona Emma, com a fibra que nunca perdeu, instalou-se no quarto do irmão com uma máquina de costura emprestada às irmãs e fez, durante a estada no hospital, roupas de todo tipo: lençóis, fronhas, roupas de mesa, hábitos para as irmãs, roupas para os médicos, um sem número de utilidades para todos os usos.

Ao receber alta do hospital, contou-me tia Emma, vovô Emílio quase nada tinha a pagar, pois a italiana Emma havia pago quase tudo com seu trabalho.

Mas a filhinha Emma namorava e passeava. Havia, tinha certeza, encontrado a razão da sua vida. No Mário estava concentrada sua felicidade, e ele a adorava como se adora o que nos enleva, extasia e obstina.Os setenta dias se passaram, como tudo na vida, e era preciso voltar a Ponte Nova. Vovô operado já estava bom e em alta. O médico o liberara, inclusive para a absurda viagem de mais de um dia Rio-Ponte Nova, no interior de um vagão bamboleante, puxado por uma Maria Fumaça da Leopoldina Railway, que lançava fagulhas ao ar, e encrespava os cabelos dos passageiros, e pretejava os guarda-pós, usados para proteger a roupa principal nestas viagens.

Vovô estava corado e esperançoso. A operação fora um sucesso. Dona Emma, feliz, não via a hora de rever a cidade e abraçar todos os seus e os amigos - quantas saudades! Vontade danada de ver aqueles ambientes tão familiares. Esta euforia não encontrava eco na bela e jovem sobrinha, nos seus olhos, lágrimas; no seu coração, um aperto infinito. Tanta indefinição no ar. Tanto amor (seria amor, ou saudade ou pressentimento?) que ia levar junto, e tanto amor que ia deixar para trás.

Despediu-se do Mário como se despedem os aflitos e os desiludidos, para uma viagem que de antemão pressentem não terá volta. Deixam para trás o coração, a alma, e vão vazios sem eira nem beira. Na estação, embutidos nos olhos de Emminha viam-se os olhos de Mário. Emílio e Emma nem perceberam a aflição da moça quando o trem apitou seu último apito, e pòs-se a rodar nos trilhos, afastando a menina do seu querido, e a fazendo assustar a cada barulho. Embevecida em ilusões, ela vivia as recordações de Mário, estava junto ao Mário, ele rindo e mostrando-lhe as belezas da vida e do amor.

Morta de sono, recostou-se no ombro de sua tia, dormiu e sonhou atribulações e desventuras. Acordou gritando do pesadelo Uma mão forte e peluda arrancava dos seus braços o Mário e o levava para bem longe, junto ao Corcovado, e lá do alto ele abria os braços no lugar de Cristo. E ria, o Mário ria preso ao Corcovado e ela, ela tentava escalar o pico e não conseguia; caía a cada tentativa, enquanto Mário ria gargalhadas que ecoavam por toda a baia. Chorou muito durante a viagem e sofreu ainda mais nos dias que se seguiram, vivendo sòzinha em Ponte Nova, cheia de saudades e recordações.

Cada carta recebida trazia um pouco de ar, e assim seu organismo se purificava e ia vivendo. Corresponderam-se por muito tempo. O pai Emílio não desconfiava de nada, e as cartas de Mário eram endereçadas ao irmão Reinaldo, que funcionava como cupido entre os dois. Dona Emma descobrira tudo durante a internação, gostava do Mário e aprovava o namoro. Vez por outra Mário escrevia para o Reinaldo mesmo, para saber de assuntos e contar casos. Numa dessas cartas pedia explicações por terem mentido a ele com respeito ao estado civil do coronel Emílio, dizendo ser ele viúvo, ao passo que soubera, por uma senhora de Ponte Nova, que ele era desquitado, e que a mulher, Pinota, morava no Rio. Quando a senhora, uma conterrânea do vovô, o desmentira e contara toda a verdade, ele ficara com a cara no chão de vergonha. Tio Reinaldo diplomàticamente respondeu, conseguindo serenar o espírito e as inquietações que surgiam no ânimo do namorado da irmã.

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