FAMÍLIA SAPORETTI

Saturday, November 25, 2006

26-Os Filhos de Hugo: Virtuosismo no Futebol de Ponte Nova

Américo Saporetti Filho

Durante a vida de Hugo houve sempre um Saporetti nos campos de futebol de Ponte Nova, titular do PFC e comendo a bola.

Eduardo, primogênito, na função de 'center forward', levou o time a vitórias monumentais com a força de sua raça, sua impecável habilidade e presença dentro das quatro linhas. Eduardo sabia como levar a bola, como invadir a defesa inimiga, e como colocá-la com precisão dentro das redes do adversário. Era sempre caçado em campo pelos beques e defensores que eram desmoralizados pelos seus dribles, pelas suas fintas, jogos de corpo indefiníveis em astúcia e que sempre desestabilizavam o adversário e os enervava. Choviam pontapés, carrinhos maliciosos visando suas pernas, e cotoveladas. Após as partidas, Eduardo exibia escoriações e inchaços nas pernas, pés e corpo. Futebol do início do século era força, sem muita estratégia, alicerçado na habilidade, na garra e no amor à camisa. Quantas vitórias o Pontenovense não conseguiu baseado sòmente no binômio Raça Amor e Camisa.

Mas irônicamente o que fez este craque dos melhores, incógnito do interior de Minas, que faz até hoje suspirar os mais velhos e compará-lo aos melhores do Brasil? O que fez Eduardo encerrar a carreira de futebolista não foram as botinadas, nem as contusões que as teve aos punhados nos campos de futebol, mas sim um insidioso reumatismo precoce que o atingiu aos trinta e três anos e o retirou daquilo que ele mais gostava de fazer. Portanto, de 1915 a 1933, durante 18 anos, Ponte Nova pode ter o privilégio de ver, e os baetas de vibrar com o futebol delícia, o futebol malícia, o futebol habilidade, enfim, o futebol arte do filho mais velho de Hugo.

Mas não pensem que deixou o futebol, ah, isto não, nunca. Durante os quarenta e tantos anos que ainda lhe restaram de vida, dedicou-se a formar os jogadores do futuro como técnico do infantil do Pontenovense e antes, por muito tempo, diretor de futebol. Viveu até o fim de sua vida para o clube e o esporte que viu nascer e no qual foi um virtuose.

Junto com Eduardo, alguns anos de defasagem, surge para o futebol o segundo filho homem de Hugo, apelidado de 'A MURALHA DE CONCRETO ARMADO', pelo vigor, pela luta e pela firmeza do seu futebol de beque. Como uma intransponível muralha de concreto armado na retaguarda, não permitia o avanço da linha ofensiva do inimigo neutralizando todas as ações de ataque. Tio Lili está no folclore futebolístico da cidade como um dos mais perfeitos beques de que se tem notícia. Lutava com raça e com tal precisão, que deixava embasbacado quem menos prezava aquele jogador franzino de corpo, com aquelas pernas finas. Por trás daquela aparência frágil residia um atleta perfeito, numa época em que futebol não tinha o poder e a força que tem hoje, e ainda começava a entusiasmar de maneira incipiente as pessoas simples. Hoje futebol e carnaval são as duas forças mais vigorosas do país, envolvendo numa só massa, pretos, brancos, ricos, pobres e sem distinção de credo e de partido político.

Genioso e sistemático, sempre foi defensor fervoroso de que o Pontenovense devesse ter seu próprio campo, ao invés de utilizar o campo do Engenho, gentilmente cedido pelos Marinho numa área da fazenda. Hugo não ouvia as queixas do filho. 'Os Marinho são pontenovenses da primeira hora e não vão nos decepcionar. Além disso trabalhamos a área, drenamos o pantanal e fizemos melhorias na região. Não ferva sua cabeça com isto, meu caro Líbero.' argumentava, mas sabia que ali tinham uma situação provisória, de empréstimo, e que breve seriam obrigados a sair. 'Maldita propriedade, os homens nasceram livres, a propriedade não existia originalmente. Os poderosos tomaram conta de tudo. Salvem-nos dos poderosos'_ as convicções anarquistas de Hugo vez em quando afloravam. Num domingo de jogo Hugo desentendeu-se com Jaime Marinho, um dos donos da fazenda do Engenho, e, após a discussão violenta, este deu um veredito:

_'Vocês do Pontenovense não jogam mais aqui...'_ parecia o menino dono da bola que pára o jogo tirânicamente, e com a pelota debaixo do braço entra para casa e deixa a meninada boquiaberta, sem poder jogar seu futebolzinho.

Muitos tentaram conciliar a decisão do Jaime para que ele voltasse atrás, afinal a região havia sido drenada, gramada e estava impecàvelmente cuidada e mantida pelo pessoal do Pontenovense. Também, ponderavam outros, a atitude não caía bem polìticamente a quem tinha pretensões a prefeito. O povo não estava a favor nem apoiava atitude de tamanha prepotência. Jaime penitenciou-se perante Hugo, reconsiderando seu ato, segundo ele, fruto do seu gênio explosivo. Hugo aceitou as desculpas mas Lili não, e fez juramento solene:_'Naquele campo do Engenho eu não jogo mais...'

Hugo apoiou Lili, como era praxe sua apoiar quem estava com a razão, e então, em 1925, inauguraram o novo campo na chácara Crivellari, depois de um árduo trabalho de drenagem da região e preparação da área. Na luta contra a região inóspita valeram muito o ideal, a coragem, a força e a raça de pontenovenses autênticos de boa cepa. É bom lembrar a figura de Antônio Bodoque, que era o esteio de qualquer empreitada dos baetas e que foi de grande valia na construção do campo da chácara Crivellari.

O local deste campo é o mesmo, na Vila Oliveira, onde mais tarde foi construida a Praça de Esportes Juca Fonseca, que perdura até hoje, com a diferença que o campo construido por Hugo e turma estava em posição ortogonal ao que hoje existe lá.

A firmeza de opinião de Lili foi benéfica ao PFC. Dentro do campo como fora dele, Lili sempre foi uma muralha difícil de ser vencida ou ultrapassada. Aquela muralha só foi vencida por uma árvore, um eucalipto, que lhe caiu em cima num momento de distração. Não poderia ser de outra forma a causa da sua morte, naturalmente, ele viveria eternamente.

Américo, meu pai, com pouco mais pouco menos que quinze anos, já era titular do Pontenovense como 'center forward'.

Todos vocês já estão pensando e rindo matreiramente: mas assim é muito fácil, o pai sendo técnico, todos os filhos são titulares e bons, mesmo que sejam uns pernas de pau. Mas é bom ressaltar, não havia privilégios, não com Hugo. Oportunidades sim, estas ele sempre deu a todos, brancos e pretos, ricos e pobres, mas jogavam os melhores e os mais capazes, e seus filhos foram titulares porque nunca o decepcionaram e eram os melhores.

Há casos interessantes que demonstram a personalidade nada convencional de Hugo, assim como mostram o seu olho clínico em descobrir talentos. Eis um deles: O Pontenovense passava por fase ruim e não rendia o que se esperava dele. Hugo, preocupado, não sabia o que fazer. Um dia antes de uma grande partida, viu um garoto italiano jogando bola numa pelada de rua e gostou do estilo dele e perguntou se queria jogar no Pontenovense. O rapaz disse que sim, e era novo na cidade, se chamava Caetano, e já jogara em clube na sua terra de origem.

Hugo não titubeou. Tirou seu filho Eduardo da equipe e colocou o novato, e o Pontenovense ganhou de 2X1, com gol da vitória de Caetano. Dizem que Eduardo chorou muito por ser barrado. Assim era Hugo com o seu Pontenovense.

Voltando ao Américo, ele funcionava para o time como o armador de hoje, apesar de naquela época o futebol ser mais ofensivo, na base de 2-3-5 e não do 4-2-4 ou outros esquemas de retranca, marcação por zonas e que tais.

Conversei bastante com papai sobre seu futebol e o futebol do seu tempo, e sem nenhuma modéstia, sempre exaltou as suas qualidades de grande jogador e exímio goleador. Lendo os jornais da época, no que se refere às atuações do meu saudoso pai, eles dão a impressão de que Américo era um malabarista da pelota, e que muitas vezes prendia muito a jogada, e com isto deixava as oportunidades perderem-se.

Referia-se sempre com saudosismo, dose de nostalgia e muito orgulho ao convite recebido pelo Flamengo para integrar o plantel rubronegro no Rio. Numa partida entre PFC X FLA, os dirigentes do clube carioca ficaram entusiasmados com seu futebol e fizeram de tudo para levá-lo. Já estava noivo nesta ocasião, e mamãe não consentiu na sua ida, que só por ele teria fàcilmente se concretizado. Completava dizendo que foi a grande decisão de sua vida, pois futebol profissional na década de trinta era pura ilusão, e os jogadores profissionais mal pagos, e quase sempre acabavam na miséria. Não existia o fausto de hoje com contratos milionários, bichos, luvas e toda espécie de paparicação.

Caso interessante que contava, se referia à razão porque deixou de usar aliança. Contava que, numa partida, depois de cabecear uma bola na pequena área, foi cair dentro do gol, e se viu entrelaçado na rede. Sangue quente levantou para comemorar o tento. Viu com desespero que sua aliança estava presa à rede e que penetrara no dedo anular, quase o decepando. Depois desta data só veio a colocar aliança após as bodas de prata, por pressão dos filhos e dos netos.

O filho caçula de vovô Hugo, tio Nello, jogou pouco no PFC, mas deixou saudades com seu futebol inteligente e clássico. Com 17 anos, foi tentar a vida no Rio de Janeiro, e consta que jogou no Fluminense, mas os seus afazeres não permitiram que se dedicasse ao futebol, e aos poucos foi colocando de lado o esporte-arte para tratar de sobreviver.

Vi papai controlar bola várias vezes, e pude avaliar quão íntimos eram. Vi também uma partida de veteranos, onde estavam reunidos Américo, Lili, Eduardo e outros contemporâneos, e pude vislumbrar o que teriam sido aqueles senhores barrigudos, sem pique, quando com seus quinze ou vinte anos de idade, tal a cordialidade com que recebiam uma bola, o prazer e a gentileza com que a aninhavam no peito e a colocavam no chão, e a certeza com que dirigiam o seu caminho. Vi-os veteranos, com muito prazer e satisfação. Imagino-os jovens, num campo de futebol para a alegria da torcida alvi-rubra, os baetas.

Também Nello, sua classe, pude conhecer em 58 (ou 61?), num futebol de areia na praia do Leblon. Com seu corpo esbelto, que conserva até hoje, tratava a pelota como companheira, e colocava, com seus quase quarenta anos, muito rapazinho de vinte nos bolsos.

Foram uns virtuoses do futebol, deram muito suor pelo PFC, ganhando troféus, campeonatos, e fazendo vibrar a torcida e que serão sempre lembrados enquanto houver remanescentes daquelas épocas áureas.

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