FAMÍLIA SAPORETTI

Wednesday, March 07, 2007

30 - Emma Garavini : 'Eu fui jogada fora'


Américo Saporetti Filho

Emma na sua maturidade

O casamento de Emma e Alemão


Em Ponte Nova vivia há algum tempo, tomando conta da 'Garagem Lopes', um mecânico afamado de nome Antônio Krollman, mais conhecido como Antônio Alemão. Praticamente com o apoio de Annibal Lopes, introduziu e fez com que os fazendeiros da região acreditassem nas vantagens do caminhão e do automóvel, em substituição ao carro de boi e às charretes puxadas a burro. O Alemão percorria e desbravava aquelas regiões ainda tão primitivas com caminhões, e também afrontava as picadas com as baratinhas de vinte e trinta. A fama do Alemão correu logo por toda a Mata Mineira.

Tio Emilédio não saía da oficina do descendente de germânicos, e queria saber tudo sobre carros e não perdia a oportunidade em dar uma volta com o mecânico a testar autos, ou a verificar se os consertos estavam adequados. E queria aprender a dirigir e passear de automóvel pelas redondezas, causando emoção nas garotas. Alemão, de olho na Emminha, não perdeu tempo em usar este expediente para trazer a menina para o seu lado, e com isso conquistá-la; só aceitaria ensinar ao Emílédio 'pilotar' automóveis e até emprestaria a ele carros para programas com as garotas da cidade, se ele trouxesse a irmã para que eles fizessem algumas viagens. Emma não queria. Estava comprometida com o Mário. Mas o irmão insistia, e insistia com tamanha persistência que ela cedeu, mas impôs uma condição: só se a Telles fosse junto (Telles era uma garota insuportável para o irmão).

Não é que o Emilédio nem se tocou e conseguiu que a Telles aceitasse fácil, fácil. E lá se foram eles até Urucânia num domingo maravilhoso de céu azul. Tia Emma vomitou a viagem inteira, tal o mal estar que o alemão lhe causava, ou seria o balanço do carro ou a poeira da estradinha?
Emma julgou mal o seu ato. Achou que tinha sòmente cedido a um capricho do irmão sem maiores consequências e não podia imaginar o quanto estava mudando o seu destino, para pior.]
Nesta época o coronel Emílio descobriu as 'Cartas do Reinaldo' que estavam em cima do guarda-roupa, e dizendo _'Deixa ver estas bagatas'_ leu-as e ficou sabendo do namoro do caçulinha com o rapaz do Rio. Receioso que a filha viesse a encontrar a mãe que morava na capital federal, incontinente proibiu o namoro de maneira terminante, e sem ouvir as argumentações da filha.
Iniciava assim, de forma impiedosa, todo o drama de uma existência de quem não merecia sofrer tanto e qu tornaria amarga sua longa vida.

E na cabeça da moça as vozes sopravam argumentações do tipo _'Emma, acha que o Mário vai querer você, agora que sabe que sua mãe é uma adúltera? Acha?' _ E assim foi perdendo as forças para lutar pelo seu querido carioca.

Tio Emilédio voltava à carga levando a irmã para o lado do 'Alemão', e usufruindo dos carros novos e podendo guiá-los.
Na cabeça da eufórica e esfusiante Emminha começaram a surgir dúvidas atrozes. 'Será que não tenho direito à felicidade porque minha mãe errou? Será que tenho que me contentar com os Alemães de quem não gosto porque os Mários vão passar ao largo pela barreira do passado dos meus pais?'

Este tumulto existencial envolveu-a e inverteu seu modo de ser. Aceitou os galanteios do mecânico e breve, em 1931, numa cerimônia concorridíssima, Emma Garavini passou a assinar Emma G. Krollman. Casou-se sem gostar, mas foi confortada pela mana Beatriz: _'Com o tempo aprendemos a gostar do homem que nos escolheu, e além disso mana, no nosso caso não podemos almejar grandes conquistas.'

Tia Emma viveu durante vinte e dois anos com este homem que bêbado, foi seu carrasco: 'Sóbrio' _ me disse ela certa vez _ 'ele até chateava de tão bom e delicado, mas era raro quando assim estava.'

A primeira vez que tia Emma separou-se dele com a aprovação unânime de toda a família foi em 1945. Não havia condições dela continuar vivendo com um animal-homem que só a maltratava e humilhava e que, sempre bêbado, quase chegou ao extremo de assassiná-la.

_'Minha sorte'_desabafa ela_' foi que sempre me provi de ótimos vizinhos que ma ampararam nos momentos mais traumáticos da minha vida. Passada a tempestade, voltava como um cachorrinho com o rabo entre as pernas na espera de um milagre que não vinha. Se fosse hoje, com as mulheres liberadas e se separando por bugigangas, não teria aguentado um sequer do que sofri nas mãos do Alemão.'

Depois do desquite, o Antônio Alemão, tal uma coisa ruim, parou de beber como se o casamento lhe induzisse ao vício terrível. Emma então foi aconselhada pelo boníssimo padre Alcides Lanna, para quem o casamento é indissolúvel, e o que Deus uniu o homem não pode separar, a voltar a viver com seu marido, pois é ao lado dele seu lugar, e outros chavões da mesma cepa, que a simplicidade do reverendo usava sem ter medo do ridículo. Tais como: ele é seu marido; Deus fez-lhe ver o caminho do bem e assim deixou o vício; você está vivendo em pecado, etc etc etc. Não resistiu às argumentações do bom pastor, e reatou seu casamento com o Alemão, com a promessa dele que não colocaria em vida mais uma gota de álcool na boca. Cumpriu a promessa por um ano, e neste tempo tia Emma viveu com um homem sóbrio, bom, responsável e carinhoso.

Todos os dias pedia a Deus e aos Santos de sua devoção para que ajudassem a conservar o Alemão sóbrio, longe se qualquer tipo de bebida. O medo de que ele tivesse uma recaída a atormentava de maneira alucinante. Havia uma vida já vivida que só de pensar pudesse voltar dava-lhe calafrios e transe de pânico. Neste episódio da reconciliação com o marido, tia Emma teve a reprovação de todos da família, que se reuniram em assembléia, discutiram pormenorizadamente a questão, e resolveram que se ela persistisse nesta insânia, eles a considerariam fora da família e cortariam relações.

Teve o desprezo e o gelo dos itmãos durante doze anos, e para eles ela era uma vagabunda, amante do seu marido.

Tia Emma e o Alemão mudaram-se então para Juiz de Fora, e ela parecia estar num paraiso, ao lado daquele homem trabalhador. Era bom demais para continuar.

A desgraça voltou num dia fatídico em que Alemão recebeu em translado para Juiz de Fora os restos mortais, a ossada, do seu pai. O choque foi muito grande para aquela estrutura de homem fraco, que não resistiu à emoção do impacto e recomeçou a beber. Para tia Emma, de enxurrada voltaram as ameaças, os sobressaltos e os traumas.

Alemão não bebia durante o serviço, era vigiado pelos colegas. Para despistar, costumava usar de vários ardis, como tomar seus goles de cachaça em xicrinhas de café. Apesar de chegar bêbado todas as noites, nunca faltou a um dia de serviço. Levantava, depois de dormir como um porco, tomava um remédio contra ressaca e trabalhava o dia inteiro como se nada houvesse, nunca queixou uma dor de cabeça. Mas depois do trabalho, invernava em algum botequim e deixava chover goles até alta madrugada. Bêbado que nem gambá, dirigia para casa.

Tia Emma era obrigada a ficar esperando-o acordada, pois se não atendesse com presteza a porta, ela a colocava abaixo a pontapés. Vivia num inferno a Emminha, envolta nas chamas do pavor. Vez por outra lembrava-se do Padre Alcides. e preguntava-o em pensamento: 'Será que Deus não tem solução para um casamento como o meu? E por que permitiu que eu me unisse ao Alemão se sabia que não daria certo e que a sua igreja não admite em seu nome que se separem os errados? Por que?'

Uma noite foi chamada às pressas para acudir seu marido. Chovia torrencialmente e ele jazia estatelado na sarjeta de uma enxurrada, a água suja envolvendo-o. _ 'Como é pesado um homem bêbado, e além de tudo encharcado! Eu ali ajudando-o, e meu capetinha lá dentro dizendo para deixá-lo entregue à própria sorte, melhor se morresse.' _ desabafa tia Emma.
Em 1952, depois de uma cena violenta, em que sua vida esteve por um fio nas mãos daquele alcóolatra, tia Emma largou definitivamente Antônio Alemão e foi viver sua vida longe dele.
_ 'Coitado do meu pobre pai'_ me disse numa madrugada _ 'terminou com meu namoro e com o grande amor da minha vida, pois não me queria no Rio de Janeiro, por causa da Pinota, mas não conseguiu mudar minha sina. Estou aqui no Rio há mais de trinta anos, e pressinto que vou morrer nesta cidade de que tanto gosto. Como foi ingênuo seu avô...'

Hoje a Emminha é uma velha amarga, beirando os oitenta anos de vida. Vida na qual foi marginalizada e que merecia ter vivido melhor, no seu enfoque. Segundo suas declarações, viveu sendo lesada. Foi lesada no amor, quando obrigada a se casar contra a vontade com o homem errado; lesada na distribuição da herança por vovô Emílio ter beneficiado uns em detrimento dela; e por fim lesada pelo Miguel da Bebé, quando colocou em suas mãos o dinheiro do apartamento que vendera no Rio, após a morte do tio Emilédio, para que ele comprasse outro em Campinas, ou uma casa. Insiste que ele a convenceu a aplicar o dinheiro no banco que gerenciava e receber os rendimentos. Só que o principal foi perdendo o valor, e ela ficou sem dinheiro e sem imóvel. Culpa até hoje o Miguelão e sua descendência.

Acho que usou um lugar comum quando me disse que foi uma laranja muito doce e bonita, arrancada antes do pé, descascada sem cuidado com as unhas e sugada violentamente, para depois servir de mamucha a ser chutada, e hoje apodrece a um canto, mofada e sem utilidade.

Numa noite de 86 fui encontrá-la num apartamento modesto da rua Bolivar em plena Copacabana. Conversamos até três horas da madrugada, e entre amargurada e eufórica, com a tesoura na mão, guardando ainda, na beleza do talhe do vestido que ia se formando aos poucos, a grande modista que sempre foi, me contava fatos da sua vida, desabafando contra tudo e contra todos.

Ainda nela há muita esperança de vida, apesar de viver à espera da morte. Quando seu irmão gêmeo Emilédio faleceu em 1964, ela julgou que, pela lei dos gêmeos, lei supersticiosa criada pelos próprios gêmeos, ou por quem estiver interessado em tirar proveito deles, ela morreria em seguida, breve. Então fez imprimir comunicados fúnebres com fotos dos dois, datas de nascimento e do falecimento do irmão, e local vago para preenchimento da data do seu falecimento. Recebi um impresso deste para rezar pela alma, e senti um forte calafrio. Desde 64 ela vive em sua casa numa atmosfera de morte.

Uma mística envolvente nos embala naquele apartamento. Tia Emma vive de algumas costuras, de uma mínima aposentadoria do Alemão seu marido, do aluguel de quartos para quatro moças, e de ajudas eventuais de parentes. Além, é uma pessoa só e doente, crente no poder da oração e da amargura, acredita em Deus e nos mortos, mas descrê nos vivos.

Num caderno que folheei estavam lá prepatrados por ela, diversos modelos de cartas e telegramas para os mais diversos fins. É só escolher e mandar depois de transcrever para o papel.

Na sua prática de costureira e modista, tem a particularidade de tê-la sido de dona Risoleta do presidente Tancredo Neves, de suas filhas e íntima da família. Conseguiu através dele, com a influência política do grande mineiro, colocação para várias pessoas. E por mais de quinze anos conviveu com eles, ali num cantinho da casa deles, costurando e ouvindo e sentindo, e às vezes sendo confidente.

Separaram quando os Neves foram para Brasília. Guarda muitas recordações da família e me afirmou que o Tancredo não é e nem nunca foi esse santo que todos querem implantar na nação; que era mulherengo e que ela presenciou várias brigas feias dele com a Risoleta. Quando a tia fez estes comentários, o Tancredo morrera dias antes e o país ainda estava sob o impacto da sua morte.

Na entrada do ateliê da tia, um cômodo do apartamento adaptado rùsticamente para as funções, com duas máquinas, uma mesa alta e grande para cortar, um manequim velho, um guarda-roupa e cadeiras, figurinos e um rádio ligado, muita linha, pano cortado e inteiro, algumas caixas de sapato fechadas em cima de um usado móvel de canto, e presa com fita adesiva num dos lados do velho guarda-roupa, esta poesia do consagrado Bastos Tigre:
"Entra pela velhice com cuidado
Pé ante pé sem despertar rumores,
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glória e ilusões d'amores.

Não te seja a velhice enfermidade,
Alimenta no espírito a saúde,
Luta contra as tibiesas da vontade,
Que a neve caia a teu redor não mude.
Mantem-te jovem pouco importa a idade,
Tem cada idade a sua juventude."

Tenho dito.

2 Comments:

  • At 1:16 AM, Anonymous Anonymous said…

    estou gostando demais das fotos :)

     
  • At 1:52 AM, Blogger alex saporetti said…

    as fotos são um tesouro não? muitas foram mandadas pela família depois que comecei o blog, legal né?

     

Post a Comment

<< Home

 
how to add a hit counter to a website