FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, March 19, 2007

36 - 1943: Morrem Hugo e Emílio - Meus Avós

Américo Saporetti Filho

Hugo no final da vida


Emílio, já idoso, com os netos, alegria de sua velhice (possivelmente Diana, Bebé e Toninho)

No carnaval de quarenta e três, Hugo não pode farrear. Seu pandeiro ficou dependurado atrás da porta do quarto. Uma dor muito forte por toda a barriga e quadris o incomodava. De algum tempo para aquele , o seu semblante era quase sempre de dor, mesclado por alguns desvios de alegria, pois quem durante toda a vida viveu em euforia com o mundo, não perde o cacoete porque dores fortes e constantes vêm atrapalhar o bom humor. Mas aquele carnaval já o encontrou com dores contínuas e, talvez, salvo melhor avaliação, tenha sido este o primeiro carnaval sem Hugo pelas ruas de Ponte Nova.

Na mesma época o velho coronel Emílio, trazendo nos olhos, no andar e no rosto as marcas das decepções, fora acometido de crise cardíaca debelada com sucesso, pois atendido a tempo e submetido a sangrias salvadoras.

No ar, prenúncios de que o ano da graça de mil novecentos e quarenta e tres, do meu primeiro ano de vida, não seria dos mais auspiciosos. Nuvens negras da desgraça pairavam sobre as famílias Saporetti e Garavini, e a indesejada das gentes estava de objetivo fixo: queria levar hugo e Emílio. E não deixaria por menos. O primeiro, Hugo, a 28 de abril e o segundo, Emílio, a 20 de novembro, com quase sete (que número mais cabalístico?) meses de diferença, e me deixou órfão dos avós que, na tenra idade, sem saber de nada, eu tanto prezava.

Mas vamos aos fatos.

Não demorou muito para que os médicos de Ponte Nova sugerissem que Hugo deveria tratar-se no Rio de Janeiro, e tudo indicava que deveria ser operado. Já em abril Hugo parte de Ponte Nova para a Capital Federal. Num banco de trem de ferro -Maria Fumaça- aguentou firme dia e tanto de viagem. Ao seu lado, o doutor Innocêncio, que chique, agora doutor, seu primeiro neto, recém-chegado da campanha da Itália, onde servira no corpo médico da FEB, a mulher Ida, firme como uma pilastra, e o filho Líbero, o que nascera para ser livre. Esperava-os na Capital Federal o filho caçula Nello.

Hugo, com olhar matreiro, encarava tudo com humor. Não podia perder esta oportunidade, e brincando com aquele sotaque tão bonito:_'Precisa de tanta gente para me levar para o matadouro?'_ tropeçou no "matadouro" e, debaixo do riso de todos, resolveu trocá-lo por "lugar onde se esgoelam os bois."

Innocêncio explicou:_'Hugo, os médicos de Ponte Nova, e estou também de acordo com eles, acham que você terá que se submeter a uma operação delicada, só no Rio é possível fazê-la com segurança.'

Ele bateu nas costas do neto, sorriu, fez um muxoxo e riu um sorriso enigmático.

A dor vinha, e agora estava voltando a espaços cada vez menores, ele se curvava, um lenço na boca para não gritar, e sofria. O neto médico aplicava injeções e remédios, tentando aplacar os espasmos dolorosos. O sofrimento de Hugo fazia todos sofrerem, e a cada acesso de dor era como se todos estivessem martirizados, os olhos se enchiam de lágrimas que desciam pelas faces vincadas e lisas.

O trem parava na estação e só quem viajou de Ponte Nova ao Rio de Maria Fumaça sabe em quantas estações o trem para ao longo do longo percurso. Era só o trem parar nos trilhos com aquele seu barulho estridente de metal com metal, e vovô já de pé não titubeava:_'Vamos tomar una cervejina?'

E ia, como um mineiro, acompanhado ou não. Gostava de cerveja -cervejina- como gostava de vinho, de carnaval, do PFC, das famílias, e das 'creolinas'. Provavelmente ele gostasse tanto também de uma bela macarronada feita pela moglie, de um torresmo bem oleoso, de uma linguicinha curtida no calor do fogão, e de queijo. Sei que sim, posso colocar sem medo. E de pão molhado no vinho, delícia de sua vida.

Mas as cervejinhas desta viagem eram bebidas com avidez, com pressentimento de derradeiras.
No Rio, Hugo foi operado. Os cirurgiões constataram câncer na próstata em estado tão avançado que não havia o que fazer. Foi abrir para ver, constatar e fechar. Veredito médico:_'Não há solução. Caso perdido. Pouco tempo de vida. Não podemos garantir que resistirá à viagem de volta.'

Como os médicos conseguem ser tão lacônicos! A nós leigos, parece até insensibilidade. Pensem só em vó Ida, em Lili, em Nello e até mesmo em Innocêncio, recebendo de chofre aquelas frases acima que significavam o fim de Hugo. A partir daquelas frases Hugo passava a não existir palpável entre nós. _'Só um milagre.'_ e os médicos saem de cena, entregando para Deus o que acontecer dali para a frente.

Para voltar a Ponte Nova foi necessário arranjar um vagão especial com acomodações que permitissem a Hugo viajar deitado. 'Talvez não resistisse à volta' martelava a cabeça de todos. O grande Hugo estava no fim.

Tio Nello conseguiu com Arnaud Barbosa que na composição fosse atracado um vagão com acomodações especiais, e assim deitado quem só sabia ficar de pé, voltou Hugo a Ponte Nova debaixo de fortes dores, que eram acalmadas com cada vez mais violentas doses de morfina.
_'Sabe quantas injeções você me aplicou do Rio até aqui?'_ perguntou ao neto quando chegaram. Innocêncio não tinha a mínima idéia _'Setenta'_ e completou _'que tal fazermos uma fèzinha no bicho...'_ ainda pulsava naquele corpinho tornado tão frágil um gostinho pela vida que lhe escapava de maneira tão dramática.

Chegaram a Ponte Nova a 27 de abril. Na estação uma multidão silenciosa aguardava o herói do Pontenovense, o lutador pela causa dos operários, o anarquista, o bicheiro, enfim o alegre vagabundo, o homem do povo.

Hugo já não podia falar muito e ria com dificuldade, e mantinha nas mãos chumaços de pano, que enterrava entre os dentes e mordia com toda a força que lhe restava, sempre que acessos de dor lhe ocupavam as entranhas, aplacando assim os gritos que não queriam dar.

Num quartinho preparado na casa de Beatriz e Eduardo, situada na volta do rio, na rua Marcos Jardim, passou de 27 para 28 e como um cisquinho de gente, encolhido pelas dores e magro por não comer morreu irreconhecível o meu Hugo, avô. Dia negro, 28, abril, 1943.

Para ele não interessava e nem era importante ser ou não o fundador do PFC. O importante era que o Pontenovense existia e assim ele podia lutar para mantê-lo e torná-lo cada vez maior e mais valoroso.

O enterro de Hugo teve honras e a participação da cidade. Hoje ele é nome de rua no bairro do Guarapiranga.

Será que a Hugo isto interessa? Os operários continuam a vender seu trabalho por preços vis, e continuam miseráveis; a injustiça social campeia por toda a parte. E o mundo de hoje não andou um centímetro sequer (e há quem suponha que até tenha regredido) em relação ao tempo de Hugo no caminho do bem estar e da justiça social. Tenho a impressão de que Hugo não está satisfeito, onde esteja, com o rumo da Humanidade, mas também tenho a certeza de que mantém a esperança de que a rota seja mudada para melhor.

De um momento para o outro, o quarto preparado para receber Hugo na doença, após sua morte, foi ràpidamente transformado em ateliê de costura. Como é fácil aos vivos transformar as aparências externas! Um viajante que passasse por aquela casa da rua Marcos Jardim na volta do rio por volta do dia 29 de abril de 1943 encontraria tudo normal, numa aparente tranquilidade. É muito fácil mesmo aos vivos livrar-se, em aparência, dos seus mortos.

No outro quarto de hóspede da casa grande, vovô Emílio, triste, lia seus livros e dormia suas noites numa aposentadoria lenta para um homem que sempre foi ativo, vigoroso, dinâmico.
Aquele ar de tristeza intuia alguma desgraça prestes a acontecer. Aos domingos a família reunia-se para a macarronada regada a vinho. Emílio mantinha-se triste, não mais dançava as músicas italianas, só os netos lhe davam algum prazer e ainda lhe arrancavam algum sorriso de alegria. A 19 de novembro, comemorou de maneira muito íntima, assim mesmo quase que por imposição da família, os seus setenta e seis anos de vida. Não quis bolo, mas não pode impedir que todos em coro cantassem o 'parabéns pra você' e que o abraçassem com amor e lhe desejassem muitos anos de vida, e que comessem alguns docinhos em sua homenagem. Nem pode impedir a alegria de todos. Queriam contagiá-lo para que levantasse a cabeça e voltasse a ser o coronel Emílio que todos admiravam.

Vovô aceitou tudo com paciência, e antes da festa acabar, pediu licença e recolheu-se ao quarto.
Por várias vezes invadi seu quarto como só as criancinhas sabem fazer tão bem, e encontrei-o vendo fotos, lendo cartas, sentado na cama de solitário. Chamava-me e mostrava:_"Aqui está a Itália, a bota da Europa, e aqui este pontinho é Bologna, onde vovô nasceu e viveu antes de vir para o Brasil. Lá, quando tinha pouco mais que sua idade, corria campos e cavalgava cavalos. Nem me passava pela cabeça vir para o 'Brasile'.

Já grandinho, pouco tempo após receber meu diploma de mecânico pelo 'Arsenal Militar de Bologna', pus-me ao mar com a cara e a coragem e vim dar aqui neste país maravilhoso. Depois de ficar em algumas cidades vim para Ponte Nova e daqui não mais saí. Fui muito feliz, este lugar é lindo, minha família é bela e unida, mas como não podia deixar de ser, tive também muitas e imensas decepções. Agora me resta viver de recordar e de colocar a vida a limpo. Tenho pouco tempo, netinho."

Eu não ficava quieto enquanto ele desabafava. Subia na cama, pegava seu chapéu, que ficava sobre o criado mudo, e colocava-o na cabeça, e ria de satisfação olhando o vô. Depois tirava o chapéu e jogava-o no chão. Quando ia pisar nele, o vô, como um gato, apanhava-o, e meu pèzinho batia firme no chão de tábuas, fazendo um barulhinho oco. Não gostava, chorava e sapateava. Ele então, bondoso, me dava uma de suas bengalas. Eu corria com ela, e ele dizia entre os dentes, se repetindo sempre:_'Brotolóstia...'

E continuava com suas confidências para mim criança:_"Cheguei em Ponte Nova no fim do século passado -1890- por aí. Vim para trabalhar para o Innocêncio, que se casaria com minha irmã Emma, e ele então passaria a ser meu cunhado. Tínhamos um objetivo: montar a expansão da Usina Anna Florência. Para isto instalamos a oficina mecânica que hoje é a 'Oficina Mecânica e Fundição Progresso."

Ali vivi minha vida e formei os melhores mecânicos da região, assim como consegui realizar grandes obras de engenharia mecânica. Isso me dá muito prazer, pois profissionalmente não vivi em vão. Já minha vida amorosa é um pouco tumultuada. Me casei duas vezes e minhas esposas morreram de parto sem me dar um filho. Me casei a terceira vez com uma menina quinze anos mais nova com quem tive minha primogênita, sua tia Beatriz. E com ela tive uma grande família. Eu a adorava, mas ela não correspondia. Eu talvez fosse seu pai, ou protetor, e na sua cabecinha começaram a surgir outros homens e aventuras. Fui feliz com ela até que o virus do adultério entrou pelo seu corpo adentro como uma peste.

Tive então minha vida quase perdida. Fase brutal que Deus me obrigou a viver, mas que também me deu força e vitalidade para sobreviver."

Vovô parecia que chorava, e alheio a tudo, nem ligava para o que eu estivesse fazendo.
Sentado no chão, a bengala deixada de lado, eu tirara a gaveta do criado e jogara e espalhara para todos os lados papéis, remédios, óculos, relógio, e brincava absorto e satisfeito com o brilho magnetizante do ouro maciço da corrente que segura o relógio ao bolso do casaco - como era elegante o meu avô! - não sabia ainda o que era ouro, nem o que era relógio, e nem sequer sonhava com o que poderia significar uma libra esterlina, aquela libra de ouro que encimava a corrente.

Vovô chamou a filha:_'Ginette, venha cá que este seu filho me põe louco...'

Mamãe chegou, me repreendeu e arranjou a bagunça que eu fizera. Aida, minha irmã, ainda de colo, ocupava o braço esquerdo, enquanto com o outro ela me pegou aos safanões e ia me levando embora, Vovô protestou veementemente:_'Deixe-o aqui. Quando precisar de você eu chamo. Gosto de conversar com este pequeno Brotolóstia.'

Mamãe saiu e ele continuou:_"Sabe, netinho, nesta vida vovô teve um apoio mestre da sua querida irmã, a saudosa Emma, vó do Innocêncio, seu primo, agora médico. Sem ela eu já teria entregado os pontos há muito tempo, e hoje seria pó, e ninguém mais se lembraria de mim. Mas ela sempre ao meu lado me deu a força que precisei, me apoiou quando era necessário, e foi com ela que tive os grandes diálogos que me levaram a tomar as mais certas decisões de minha vida. Minha querida Emma merece toda esta saudade que sinto por ela. Quando encontrei sua vó, a Portuguesa, contra todos, Emma me fez ver que estava certo e realmente tive com sua vó uma relação muito tranquila, saudável e honesta. E para cumular a ligação, tivemos sua mãe, que é uma pérola de pessoa e a grande alegria da minha vida. E Ginette me deu você, um netinho travesso, ativo e saudável, para quem estou falando, apesar de saber que você não tem condições de me ouvir desabafando. É melhor falar a você do que me dirigir às paredes, não quero ter a sensação de estar ficando louco. Quem sabe você não está me ouvindo... só o futuro dirá..."

Parou de falar e deitou-se. Fui até ele e acariciei os seus cabelos brancos e puxei-lhe os bigodes. Gostava que eu o tratasse assim de um modo meio desconcertante, em que não podia prever a próxima cena. A luz da tarde, ainda forte, penetrava pela janela entreaberta, dando ao quarto uma luminosidade transparente de claro e escuro que ofusca, ao mesmo tempo que alegra. Subi na cama e deitei-me ao seu lado -era um grande prazer ficar deitado ao lado do vô- Ele me segurou com suas mãos gigantes e seus punhos fortes. Me retorci, gritei, chorei, ele cedeu um pouco, soltei-me e saí a correr xingando-o daqueles nomes que toda criancinha xinga mal pronunciadas e sem sentido certo, mas que não deixa de ser uma defesa, antes de qualquer outra coisa.

Riu abundantemente:_'Este me saiu melhor que encomenda.' Virou para o lado contrário e tentou dormir.

A história de vovô Emílio estava pelo meio. Não consegui ouvir o resto e nem me contou. Brincava ainda no quarto quando foi uma correria dos diabos, e me arrancaram de lá. Ainda pude ver vovô arfante, um homem estranho chegar como uma maletinha, e meus ouvidos virgens ouviram pela primeira vez palavras como Sangria, Enfarte e Morte. Continuei brincando fora do quarto do vovô, e não me lembro de mais nada.

Dias mais tarde voltamos lá, e não encontrei mais vovô em seu quarto, nem bengala encastoada, nem relógio com corrente de ouro encimada com libra esterlina, nem óculos, nem cama, nem criado, nem guarda-roupa. Aprontei um berreiro, queria vovô. Me acalmaram dizendo que tinha ido fazer uma grande viagem, tinha ido para o céu. Então era por isso que ele estava tão triste por deixar tantos amigos e fazer, na idade dele, nova imigração, mesmo que fosse para este lugar tão bonito que os maiores chamam de céu? E matutei comigo: Se é tão bom assim, por que vovô não me levou com ele?

Saudades sem fim para Hugo e Emílio. A saga destes italianos serve de exemplo. Seus exemplos são os céus que nós carregamos enquanto vivermos. Ou eternamente, se Deus não fizer objeção.

1 Comments:

  • At 1:09 PM, Blogger Marcelo said…

    Meu nome é Cristiane Nunes, moro em Nova Lima e estou muito emocionada com esse blog. Sou neta de Rina Camila filha de Hugo saporetti com Camila. Portanto sou bisneta de Hugo Saporetti pela família do lado de cá...rs. Estou emocionada por ver pela primeira vez o retrato do meu bisavô. Tínhamos somente o retrato de bisa Camila. Se puder e quiser entrar em contato conosco ficarei muito feliz! Facebook Cristiane Nunes Nunes

     

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