FAMÍLIA SAPORETTI

Sunday, March 18, 2007

35 - Segunda Guerra Mundial: Brasil na Folia da Guerra

Américo Saporetti Filho

Por esta época Getúlio resolveu entrar na guerra de Hitler e Mussolini. Não me explicaram convincentemente até hoje o que o Brasil foi fazer no conflito mundial. Dizem que submarinos de Hitler vieram às costas do nordeste brasileiro e andaram fazendo misérias, afundando nossos navios, e pondo em risco nossa integridade como país. Muitos colocam em cheque esta versão getuliana, mas a verdade é que fomos para a Itália com a nossa Força Expedicionária Brasileira, e levamos muitos jovens pracinhas para lutas inglórias, por ideais que ninguém daqui sabia quais eram realmente, e envolvemos estes nossos irmãos em torrentes de euforias demagógicas. O cemitério de Pistóia, pleno de cruzes brancas em fundo verde de grama, encimado pelo céu azul, guardou por muito tempo os corpos dos nossos pracinhas. Famílias e mais famílias choraram pelo Brasil afora suas mortes. Há também os que voltaram neuróticos e imprestáveis e os mutilados. Bem, preferiria passar ao largo deste fato tanto histórica quanto individualmente, mas não me é possível, pelas implicações que quase mudam o curso da história que estou tentando contar.

Pois é, certo ou errado, Getúlio, o todo poderoso ditador brasileiro, declarou guerra ao Eixo, e mandou para a Itália, dentro de um clima de total oba-oba, os expedicionários. Como não podia deixar de ser, deitou falação pelas rádios e pediu que outras pessoas de influência também assim o fizessem para extirpar do mundo o cancro do Fascismo e do Nazismo.


Criou-se dentro do país uma atmosfera belicista e um ambiente de guerra. Nas rádios, além dos inflamados discursos, as marchas marciais.

Tudo isso contra quem? Contra os italianos, os alemães e os japoneses. A população da pequenina Ponte Nova começou devagar a sentir os efeitos deste clima adverso aos estrangeiros imigrantes, considerados culpados pela guerra e por tudo que estava acontecendo. A perseguição, a queima dos bens, prisões arbitrárias e até linchamento já estavam acontecendo pelo Brasil afora, contra as colônias indefesas dos imigrantes.

De hora para outra, como um rojão, sem que se precisasse o exato momento do início, Ponte Nova entrou coletivamente na obsessão de se fazer justiça contra os inimigos das populações ordeiras do mundo. De pequenas desavenças, o furor foi num crescendo contra os pobres dos imigrantes até a tentativa da sua exterminação total se não fosse a ação pronta de um Homem.
Contaremos a quase tragédia. Num domingo depois da missa, a população enlouqueceu de um momento para o outro, e saiu à procura dos estrangeiros aos gritos de 'Fora os Fascistas', 'Fora os Nazistas', 'Morte aos Estrangeiros', 'Quebra-Quebra-Quebra', 'Lincha' e outros slogans de multidão enfurecida.

A casa de comércio do Mazzeo teve suas portas e sua placa quebradas. Várias vidraças estilhaçadas com pedras certeiras. A polícia fez ouvidos de mercador, olhos de coruja ao sol e pernas de curupira e não apareceu. Simbolicamente o delegado deveria estar representando o general Montgomery, e estrategicamente sem aparecer comandando de longe um ataque às hostes inimigas compostas de trabalhadores, a maioria de idosos, que inadvertidamente imigraram para aquela cidade da Zona da Mata mineira.


Mas, Deus do Céu, como pode a multidão ser tão estúpida, bruta, irracional! Investia contra o amigo, o colega de serviço, contra o professor, contra o técnico de futebol, contra a sogra, contra... contra a Fé, a Esperança, a Caridade.


Por seu lado, atabalhoadamente, os imigrantes fugiram assustados e se esconderam, e se prepararam para o pior. Partetes tomaram a defesa dos seus, e patente estava que se houvesse confronto, seria violento, e de proporções inimagináveis e imponderáveis.

Vovô Emílio manteve sua casa da Praia bem fechada, e proibiu qualquer contato com o mundo exterior aos seus familiares, e se preparou. É claro que tinha pelas imediações, difarçadamente, pessoas da fundição fiéis a ele e capazes de tudo para defendê-lo.


E todos os imigrantes, cada um a seu modo, achou um jeito de se aquartelar e esperar o desenrolar dos sombrios acontecimentos.

Porém não houve a esperada guerra, graças a Deus, que colocou um Homem na frente da turba e conseguiu o impossível de trazê-la à razão, raciocinar com ela, dispersá-la e mandá-la para casa.

A cena aconteceu assim:
Começavam o quebra-quebra da casa do Mazzeo na região central da cidade, bem perto da igreja e ameaçavam invadí-la para acabar com a família de fascistas que moravam ali, quando surge na frente deles, com olhos de fogo e mãos de aço, completamente transtornado, o pequeno e manco Everardo Bráulio. Um ousado tenta detê-lo e é lançado degrau abaixo.

A voz firme de um Hécules sertanejo brada:_'Parem, vocês enlouqueceram? Que pretendem com este absurdo? O primeiro que vier eu acabo com a raça dele!' A turba estacou embasbacada e ele voltou à carga, severo:_'Estão loucos? Não vêem a tolice que irão cometer? Que têm na cabeça, titica de galinha?

A voz firme, farpas certeiras, atingia o povo que ouvia estático e calado. Ouvia-se o arfar dos peitos fortes daqueles pobres coitados influenciados por políticos sem escrúpulos. Continuava Everardo:_'Estes italianos, estes estrangeiros que querem matar... linchar ou tripudiar sobre eles são tão brasileiros quanto vocês, com filhos brasileiros, netos brasileiros, a maioria radicada aqui há mais de vinte, trinta, quarenta anos -a maioria de vocês ainda não era nascida. Estes homens, quando vieram para cá, enfrentaram toda sorte de obstáculos, mas fizeram suas opções de lutar pelo Brasil, de engrandecer o Brasil e tomar este nosso país como Pátria deles também.
Agora dispersem e voltem para suas casas. Não há fascistas nem nazistas entre nós, aqui só há brasileiros.


A guerra é lá fora, vamos deixá-la onde está. Se a trouxermos para cá, vamos nos arrepender amargamente pelo resto das nossas vidas, já tão sacrificadas. Vamos, vamos, dispersem, cada um para seu caminho.'


Everardo foi ouvido. A multidão se individualizara e começara a raciocinar. Um conversava com o outro e a dispersão se tornava realidade. De cima dos degraus da casa Mazzeo, Everardo olhou para o sol do meio dia daquele domingo, e ficou ofuscado de luz, e viu que a paz voltava a reinar. Seu coração batia forte, seu estômago doía forte, tremia da cabeça aos pés, um tremor após tensão, um tremor de relaxamento. Uma cadeira surgiu e ele sentou, um copo d'água apareceu e ele bebeu com avidez. Na mão direita caída, um revolver sem balas. Ali estava um herói que passaria desapercebido. Os jornais da época nenhuma notícia deram ao fato e sòmente a cominicação oral trouxe-o até nós.

Ao 'macuco' Everardo uma salva de palmas deste 'baeta' esmaecido, pela habilidade indomável e heróico destemor que teve, ao domar o estouro da boiada ensandecida, e também pelo senso profundo de justiça com que catalizou e amainou a fúria que envolvia aquele povo simples, trabalhador e humilde, transformando-a, como num passe de mágica, em visão clara da realidade, sem os ranços e esteriótipos da demagogia, tão comuns nestes ambientes de transtornos populares. Soube, este pontenovense de alta visão, limpar a mente da multidão, ofuscada pelo fascínio da guerra, das manchas militares, dos discursos imponentes dos líderes do mal, que nascem e se proliferam como praga nestas épocas, inconsequentes e imaturos.

E assim Everardo entrou nesta história com galhardia pela porta da frente e com todas as honras que se deve a um Homem com agá maiúsculo. Muito obrigado, saudoso rival das contendas esportivas, não sei o que seria dos italianos e dos filhos de italianos, se não fosse a sua atitude.

Everardo, Everardo que eu tenho em minhas retinas no seu andar bamboleante de manco, uma perna maior que a outra, dizem que paralisia infantil, e também com um coçar de traseiro intenso e aflito, para alívio do prurido anal, causado por colônias interminávels de oxiuros.

Everardo, delegado de polícia, e nós tendo que ir à delegacia -comumente chamada de Gavetão- para tirar o Marcus do xilindró, por haver exagerado na bebida no carnaval e causado tumulto. O Everardo convenceu o pai que o melhor era o Marcus ficar lá durante aqueles dias de carnaval, e de fantasia sair no bloco da Quarta-Feira de Cinzas. Maior castigo não havia, pois a cidade em peso ficava no aguardo deste bloco, com foguetório e gozações mil. Me lembro muito do Everardo da 'Padaria das Famílias', pãezinhos quentes e torrados da minha infância.

Ali, nos fundos, passei noites vendo a farinha ser amassada, o pão ser conformado e colocado no forno. Noites saudosas da minha adolescência. Poderia me alongar aqui em traçar e esmiuçar o perfil de Everardo, que na certa não conseguiria. E que também não é nosso objetivo.

Para terminar gostaria de ressaltar, usando padrões de dignidade que são meus, que com este ato Everardo ganhou o direito de ter nascido, vivido e de ser lembrado sempre , sejam quais tenham sido suas pequenas fraquezas e desmazelos, que todos nós temos ao longo de tanta vida.
Depois deste incidente tão desagradável, os italianos, a colônia, mantiveram-se reservadíssimos para evitar novas explosões de intolerância por parte dos 'brasiliani'. Não queriam acirrar ânimos nem criar ambientes mais irrespiráveis.

A guerra aproximava-se do final. Hitler sòzinho lutava desesperadamente. Era questão de tempo, aguardar mais um pouco, e este ambiente tão estranho seria extirpado da face global da terra.

Para fazer frente às despesas com a entrada do Brasil na guerra, o governo confiscou o dinheiro dos estrangeiros nas contas em banco. Vovô Emílio ficou muito abatido com esta decisão arbitrária e caiu em depressão.Na administração da fundição na época estava o Juca Fonseca, em substituição ao pai Alexandre. Juca acalmou Emílio, dizendo que reporia aquele dinheiro e que mantivesse a calma. Foi só uma tática diplomática de trazer ânimo àquele velho imigrante, pois ele, Juca, não tinha nenhuma obrigação de solucionar as arbitrariedades do governo e do mundo.

Mas Ju
ca Fonseca estava armando, não se sabe por que razões ocultas, uma boa para o velho mecânico de tantas lidas e tantas lutas ao lado do seu pai Alexandre Fonseca. Juca, alegando que vovô já era rico o bastante, retirou sua participação nos lucros, trato apalavrado e lavrado pela força de contrato que um fio de bigode podia ter entre vovô e sr. Alexandre, e que, dali para a frente, pretendia dividir a parte que competia ao vovô entre os empregados que precisavam de estímulo e eram a camada mais fraca da escala social.

Demagogia ou visão empresarial? Só sei que vovô amargou esta decisão, e na rudeza de suas expressões, chegou a dizer:_'Meu garoto, por que você não usa a sua parte para fazer este tipo de benefício? è muito confortável ser bondoso, filantropo e amável com o chapéu do outro. Pegue o seu chapéu, menino, e lute por seus ideais, enterrando-o na cabeça ou retirando-o se for preciso.'

A situação entre vovô e Juca agravou-se até que o seu 'patrão' aposentou-o. Emílio nunca perdoou aquele moço mal saído dos cueiros, faltar aos compromissos assumidos por palavra empenhada. Se soubesse disso, reclamava a todo instante, teria comprado a fundição em sociedade com o Alexandre, e não ouvido o saudoso com palavras de que ele entraria com o capital trabalho, e que teria sempre participações nos lucros como se sócio fosse. Coisas de palavra empenhada, que tanto pano para a manga dá em todo o mundo. Aliado aos problemas particulares, ainda havia a guerra na Itália, destroçando as regiões que ele conhecia e amava.

Contam que nos anos que ainda lhe restavam, leu a Enciclopédia Larousse, e que, traçando comparações com as notícias dos jornais, ia identificando, marcando, riscando e fazendo anotações, com visível dor no coração, os locais onde o fantasma da guerra ia destroçando ou limpando da face da terra, e da sua querida Itália, que conhecia tão bem.
Pobre vovô Emílio.

Havia razões de sobra para que aquele italiano forte e corpulento de mais de 70 anos, mas com uma sensibilidade que os anos só fizeram exarcebar, sofresse com tantas decepções, que chegaram aos borbotões, pesadas de serem suportadas, tenazes, cruéis, apertando seu peito, difíceis de aguentar.

Vovô deixou de ir à Fundição, como fez por mais de 40 anos, e raramente passava no Saltarelli para tomar um copo de vinho tinto ou uma cachacinha. O desgosto foi superando seus prazeres e enclausurou-o nos seus últimos anos de vida.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home

 
how to add a hit counter to a website