FAMÍLIA SAPORETTI

Thursday, October 19, 2006

22 - Papai no Propedêutico

Américo Saporetti Filho

Quando mamãe nasceu em vinte e um, papai estava com seis anos e, de calças curtas, pés no chão, rodava a cidade de cabo a rabo com a vitalidade da força infantil, e com a insaciável vontade que todas as crianças têm de descobrir o mundo o mais rápido que puderem. Com essa idade já ajudava em casa, levando frangos para vender na rua, fazia contas de cabeça como poucos, e raciocinava muito bem para os seus seis anos.

Gostava de jogar bola, e esquecia da vida nas peladas de rua, bola de meia ou mamucha, qualquer outro objeto servia, desde que se deslocasse, e que não machucasse os dedões dos pés, sempre escalavrados. Quantas vezes vó Ida ia caçá-lo e o trazia pela orelha ou debaixo de vassouradas para casa. Quando não podia, enviava tio Lili ou tia Linda para buscá-lo. Tia Linda era como mãe para papai. Carinhosa, cuidava dele, dava-lhe banho, tratava das machucadelas pelo corpo e protegia-o contra os castigos da mãe, escondendo-o ou tornando irrelevantes as suas travessuras.

Ponte Nova nessa época podia ser comparada a uma grande fazenda, pela fartura de comida que se tinha e pela espontaneidade e amizade de todos. Brigas havia algumas bem sérias, miséria também, assim como os orgulhosos, os invejosos e os poderosos. Mas a terra era ampla, bonita, verdejante e com muito vigor. Nesse tempo os Saporetti moravam no morro do Propedêutico, assim chamado por ter no seu cume o Colégio Propedêutico, de instrução básica, sob a batuta exigente do seu diretor, dr. Mário Fontoura.

Apesar de moraem perto da cultura, nem Hugo nem Ida se interessavam ou se preocupavam com ela, a tal ponto de não mexerem uma palha para que seus filhos estudassem e se instruissem. Tanto que Eduardo mal sabia ler, Linda e Lili também. E dessa forma iam vivendo uma vida sem pensar no futuro.

Vovó cultivava uma horta com couve, alface, cebola, cebolinha, alho, tomate, chuchu, abóbora, espinafre, agrião, e com todo o cuidado do mundo um pomar com laranjeira, abacateiro, cajueiro, limoeiro, goiabeira, e uma árvore bela e copada de jaca, uma jaqueira.

Ida curtia um exagerado ciúme pela horta e pelo pomar. Com um chapelão de palha e tamancos, ficava horas e horas cuidando, podando, tirando ervas daninhas, e quem a observasse de longe tinha a nítida impressão de que conversava com suas plantas, pedindo que crescessem saudáveis e suculentas, enquanto adubava um pouco ali e chegava mais terra acolá.

No quintal próximo à cozinha ela conservava um buraco onde jogava cascas de laranjas, de batatas, restos de comida e de quando em vez, cobria com camada de terra e deixava fermentar, formando um esterco orgânico dos melhores, que dava às suas plantas vigor e saúde.

E dona Ida, minha cara vó, com suas linguiças? e carnes defumadas? Fazia-as de vários tipos, bem temperadas, e colocava-as dependuradas em cima do fogão de lenha, pingando e suando ao calor do fogo, sendo curtidas devagarinho. Vez por outra, vovô, tio Eduardo, os mais velhos, iam até lá e cortavam um pedaço, e cru mesmo colocavam-no no meio do pão e comiam sem fritar. Uma gostosura que pude sentir quando, ao voltar do grupo escolar, passava sempre depois das aulas na casa de vovó já velhinha, morto de fome, só pelo pedaço de pão com linguiça.

Ao visitante contumaz poderia parecer tudo muito estranho, a cozinha sempre com vestígios de barro que vovó trazia da horta com os tamancos, e as linguiças e carnes dependuradas, pingando gordura, ela de chapelão e rescendendo a tempero, vestido escurecido na altura das coxas de ambos os lados pela limpeza das mãos no preparo da comida, porém aos de casa não havia ambiente mais aconchegante e gostoso. Ah! A cozinha de vovó, com seus temperos simples, tão saborosos! E a sua macarronada? Especialíssima, com receita única, trazida da Itália, de sabor nunca visto.

Pelos pratos de Ida e pela expansividade de Hugo, a casa deles estava sempre cheia de amigos. Papai, garotinho de seis anos, ficava ali a ouvir as conversas e a palpitar, causando muitas vezes risadas, ora pela observação curiosa própria de uma criança: _'Por que o avião voa?' _'Aonde está escondido o homem que apita no trem?' _'Por que o sangue de pobre é vermelho e o sangue de rei é azul?'- ora por mostrar um gênio forte que se refletiria durante toda a sua vida:'_Papai, eu não vou levar este frango para o sr. Nunes. Não gosto do filho dele. É metido a besta' _'Pode me bater , mãe, mas eu não vou continuar jogando bola nas peladas'.

Um dia, lá pelo fim do ano de 21, ele chegou para a mãe e pediu:_'Mãe Ida, me deixa ir para o Propedêutico aprender a ler e escrever. Deixa mãe... fazer conta eu já sei de cabeça...'

A vó mexeu com a colher de pau o feijão que estava no fogo, olhou ao longe e, com o pensamento na belíssima produção de mangas para aquele ano, respondeu ao filho impertinente:
_'Precisa non, figlio. Qui cosa va fazer con letura...'
_'Quero ser gente importante, mãe. Não quero vender frango e andar descalço a vida inteira.'

Linda, que tudo ouvira, tomou para si a empreitada e, no ano seguinte, papai se juntou à turma que subia o morro para encontrar o saber, matriculado no primeiro ano primário do Colégio Propedêutico, para ser 'alguém na vida' como queria. Papai foi mais do que alguém na minha vida, e acredito, na dos meus irmãos, e de quem conviveu com ele. Dentro de uma coerência impressionante, não guardou bens materiais nem deixou herança para nenhum de nós.
_'A herança que quero deixar para vocês é o estudo'.

E conseguiu legar esta herança a todos os filhos. Graças a Deus...

Monday, October 09, 2006

21 - Nasce Mamãe

Américo Saporetti Filho


Na foto Ginette menina, Bebé, filha de tio Eduardo sentada, e a austeridade da Maria Portuguesa


Alguns anos depois a Maria Portuguesa apareceu na vida de Emílio. De maneira simples e sem pretensões, por um acaso. Um aparecimento, diria, sem maiores consequências.

A Portuguesa trouxera para Ponte Nova uma meninazinha de nome Josephina (mesmo nome da Pinota), conhecida como Zefina, novinha ainda e foram morar atrás da Fundição.

Lá por alguns anos, aquela menina de olhos azuis, gestos meigos e cabelos claros ia e vinha e passava pelos olhos acesos de vovô, que brincava com ela, a pegava no colo e fazia agrados. Até que vovô foi à casa da menina e ficou conhecendo sua mãe oficialmente, na verdade sua mãe de criação. Nasceu então entre eles uma ligação forte; uma ligação que durou até a morte de vovô.

Desta união nasceu mamãe em 11 de setembro de 1921, nome Ginette da Assumpção, mais tarde, em abril de 1938 reconhecida legalmente filha de Emílio e passando a assinar Ginette da Assumpção Garavini. Contam que o nome Ginette veio de um filme famoso na época onde as artistas se chamavam Ginette e Gaby. Só não sei que filme é esse e que artistas são estas. Belíssimas, dizem os da época.

Dona Maria Portuguesa foi mulher rude, severa, sem cultura, simples no vestir. Mulher que ao sair de Espera Feliz para Ponte Nova trouxe, tirando da família verdadeira a menina Zefina, e cometia assim, incontinenti, um dos crimes mais sérios, que é o de separar o filho dos pais. Mas também foi a mulher, amante e companheira, que com seu carinho e dedicação, e com sua fidelidade, deu ao bravo Emílio, quando ele precisava, alento de mulher tão necessário para que o homem levante a cabeça e siga o seu caminho.

Essa mulher controvertida, que criava Zefina com mão de ferro, obrigando-a a tarefas tão vis, e que a marcaram ainda menina para o resto da vida, tais como, debaixo de risadas dos vizinhos, descer a rua da Fundição e ir despejar o grande urinol no rio Piranga, ou levantar antes do sol bem cedo, naquele horário em que o sono é mais tocante e gostoso, para encher d'água os tonéis do uso diário. Foi a mesma mulher que ajudava aos pobres, que era caridosa, piedosa, temente a Deus.

Dona Maria Portuguesa, minha vó materna, faltava-lhe a falangeta do dedo médio da mão direita. Por esta razão tinha-se sempre a impressão que ela estava a costurar, com um dedal preso no dedo.

Quando sua filha, minha mãe, nasceu, vovô estava com 54 anos. A alegria dele foi tamanha que reuniu a italianada toda na Praia no Saltarelli e cantaram e comeram e beberam ao som da rabeca já gasta pelo uso do Venturolli, até altas horas da noite, saudando o grande acontecimento. Começou a voltar o sorriso ao rosto de vovô, e claramente se notava que ele ia esquecendo o mal de amor que quase o corroeu por inteiro. Aí está o grande mérito da dona Maria Portuguesa: Fazer vovô Emílio renascer aos cinquenta e quatro anos, e dar para mim esta pessoa tão fantástica e maravilhosa e bela, sob todos os pontos de vista e ângulos de razão que é minha mãe, que nasce agora nesta história mas que sempre viveu em mim.

Em 1921 Emílio pode encher de alegria seu peito. Aquele batalhador napolitano em terras de América bem que já merecia.

Da sua ligação com dona Maria da Assumpção de Jesus, conhecida Maria Portuguesa, nascia a onze de setembro sua filha Ginette, gordinha, saudável, de parto normalíssimo e o orgulho daquele italiano de cinquenta e cinco anos. A entrada daquela que seria a minha mãe nesta história exige alguns preâmbulos, voltas e meia voltas para que o fio da meada seja encontrado e trançado devidamente.

Sunday, October 01, 2006

Pinota em grande estilo

 
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