FAMÍLIA SAPORETTI

Monday, July 31, 2006

Os Gêmeos Emma e Emilédio


Os gêmeos Emma e Emilédio (data desconhecida)

11- O Casamento e os Anos Seguintes

Américo Saporetti Filho
Pinota e pela aparência seus dois irmãos mencionados em capítulo anterior


Em junho de 1902 nascia sem nenhum problema uma linda menina, a alegria eterna de Emílio, que respirou aliviado e pode dizer aos quatro cantos de Ponte Nova e aos céus que era pai e muito feliz.

Os preparativos do casamento correram rápidos e logo Pinota, a exuberante Pinota, passou a assinar Seraphina Lanza Garavini, com direitos em comunhão de bens às alegrias e tristezas que ela daria durante quinze anos a Emílio Garavini.

Emílio adorava Pinota, mulher que , boneca, lhe trouxe o prazer de viver, lhe deu esperança no futuro e força àquele corpanzil de ferro e aço, acostumado ao calor forte da boca do forno, à forja e à bigorna. Ela tão menina tinha uma estrutura de mulher para lhe dar filhos e não morrer. Beatriz, a linda Beatriz, era uma bambina bela, agradável, cheia de vida, e estava ali pequetitinha clamando por ser amada.

Emílio passou a ver tudo pela lente de Pinota e pelos olhinhos, boquinha, bochechas, perninhas, cabelos cacheados, narizinho e pelo jeitinho feliz de quem ia viver a vida com amor da filhinha Beatriz. Emílio rejuvenesceu enquanto durou sua felicidade com Pinota. Era bem um meninão alegre apesar dos cabelos já prateados que tentava artificialmente esconder, e das rugas que envolviam as extremidades dos olhos e cantos da boca, que matreiramente disfarçava com um prolongamento sutil do bigode.

Pinota era sua Dalila, não havia desejo dela que não fosse imediatamente satisfeito pelo coração embevecido do meu enamorado avô. Neste ambiente nasceu em 1904 o querido Antonio Garavini, o tio Toni com quem convivi, ele já cinquentão, e que sabia trazer para o seio de uma conversa tudo de alegre e engraçado que se pode ouvir. Acredito que tenha nascido como todo bebê, peladinho, lambuzadinho, gordinho e com o cabeção que, marca registrada dos Garavini, deu muita alegria e euforia a seu extasiado e bobo pai.

A cada parto a mulher, ainda convalescente, recebia presente de montão por ter dado com tanta galhardia mais um bambino para a família: roupas de gala, jóias várias, colares, braceletes, pingentes, brincos e afins. Quantas vezes Pinota foi até a Capital Federal comprar roupas e outras necessidades pessoais, acompanhada de negras de confiança para os serviços e ajudas na viagem cansativa.

Pinota gostava de ser apreciada e cortejada pelos homens, seja nas festas que frequentavam assìduamente, seja nos gracejos de rua. Recebia os galanteios com a satisfação com que a menina abraça a boneca que acaba de ganhar.

Assim a Pinota correspondeu ao galanteio de um acrobata de circo e desta união secreta nasceu Reinaldo Garavini, em 1907, diferente dos filhos de Emílio, moreno, rosto afilado, porém criado com todo amor por um pai tão zeloso da sua prole como o tico tico ao criar os filhos pretos do chupim. O acrobata era cigano e talvez por isto tio Reinaldo cedo saiu de Ponte Nova e veio para São Paulo tentar a vida e tornar-se milionário. É bom que se diga que naquele tempo os circos ficavam meses numa mesma cidade, e os artistas passavam a fazer parte da vida social do lugar, tendo muitas vezes ido embora levando consigo rapazes e moças do lugarejo que os hospedava.

Pinota, muitos anos depois, vovô Emílio já morto, revelou este fato para sua filha Beatriz, como fato mais natural do mundo, e dando a entender que não fizera nada de errado. Assim foi Pinota, hábil e fútil, bela mas extremamente insegura, amante carinhosa e adúltera premeditada. Talvez as explicações estejam no pai assassino, padrasto insensível e brutal, atuando numa cabecinha em formação e muito carente de carinho e amor. Viu no vovô o pai que não teve e nos amantes uma forma de revidar ao padastro que sempre detestou.

Em 1909 nasciam os gêmeos Emma e Emilédio. Pinota foi acometida de grave crise de anemia em virtude da gravidez difícil e das complicações no parto duplo. Ela que, com o passar dos anos apurava-se num apogeu de graça e charme e encanto, viu-se definhar em processo trágico que poderia ser fatal se não tratado devidamente e com a urgência que o caso requeria. Foi indicada uma viagem de recuperação à Itália em complemento ao tratamento convencional.

Por obra graça e conta do coronel Emílio Garavini, partiram para a Itália Pinota com seus cinco filhos, dona Emma e a dona Seraphina que morria de saudades da terra natal, treze ao todo sem data para voltar.Durou dois anos a estada da caravana em terras italianas. Ao chegarem lá se hospedaram no sítio do tio César do vô, e depois alugaram uma casa na via Rialto em Bologna. Os meninos e as meninas em idade escolar foram para as escolas e conta-se que dona Emma aborreceu-se demais e nunca perdoou seus patrícios italianos que racialmente preconceituosos evitavam seus filhos por terem a cor da pele ligeiramente penumbrada, traço genético do seu Innocencio.

Vô Emílio buscou Pinota e seus filhos em 1911 e aproveitou para rever Bologna e os amigos que já era difícil encontrá-los. Notou mudanças na sua querida Itália e tristemente conscientizou-se que nunca mais encontraria a Itália querida de sua infância.

Já dona Emma permaneceu por mais uns anos na Itália com sua mãe Seraphina, seus filhos e os gêmeos Emma e Emilédio, e só voltou quando o espectro da primeira guerra mundial começou a aparecer nos céus do mundo.

Tremia só de pensar que um de seus filhos pudesse ser convocado. Retornou ao Brasil em 1914. Por esta época Emílio era considerado pessoa nobre, rica, pertencente à alta sociedade pontenovense. Sua fortuna era invejável, pois aplicara em imóveis, possuia várias casas, um armazém de produtos importados e belo ordenado na fundição com participação nos lucros. Não sei se por compra de patente, mas julgo que não, e me parece que estas patentes não eram negociadas com estrangeiros mas sim pelo carinho e respeito do povo humilde, só sei que vô Emílio era alcunhado de Coronel Emílio Garavini.

Tuesday, July 25, 2006

10- Dona Emma e Pinota

Américo Saporetti Filho

Dona Emma e seu neto Innocencio (mais tarde Dr. Innocencio, filho de tia Linda)



Dona Emma, dona Emma, como gostaria de tê-la conhecido... Tenho em meu poder um retratinho dela com matinê, vestido longo simples, coque preso à nuca, óculos que John Lennon reinventaria sessenta anos depois, olhar firme e decidido de mulher que nasceu para vencer os obstáculos. Quando miro este retrato noto firmeza de propósitos tão grande como se o amor estivesse plural e garantisse o amanhã e o depois. Que pena ter-me sobrado só o retratinho, mas ainda bem que este retrato salvou o seu olhar inteiramente. Com cinco filhos, o último no ventre, ela perde o marido, e sòzinha com o apoio do irmão cria e educa todos. Foi o esteio e a força da família. Nos momentos de angústia e depressão, Emílio ia a Emma, que o tirava da boca do inferno e lhe mostrava o caminho do céu. Emílio passou a morar em casa de Emma.

Modista afamada, Emma mantinha um atelier onde eram feitos vestidos para as chiques donzelas e senhoras de toda a região. Sob sua direção e orientação algumas moças aprendiam corte e costura e outras trabalhavam com salário. O atelier de Emma Garavini ainda é lembrado com saudades por quem pode ver e sentir a dedicação e o prazer com que ela fazia os vestidos, e a beleza deles prontos, ornando os corpos e esbanjando sucesso nas noites de gala da época. Sem medo de errar podemos dizer que vinha gente de toda Minas Gerais desfrutar do prazer de ter um "vestito" com o talhe e a arte de dona Emma.

Enquanto seu irmão Emílio, na fundição, forjava os grandes mecânicos do futuro naqueles meninos imberbes que lhe eram entregues "para aprender ofício" pelos pais, ela, dona Emma, firme e decidida, sem usar tapas e bofetadas ou pontapés, formava modistas da sociedade pontenovense, algumas vivas até hoje, e trazendo nas costuras um pouco que já é muito do que a mestra fazia com a tesoura, agulha e linha.

Entre as moças que trabalhavam no atelier de Emma se destacava pela sua beleza e vivacidade uma italiana quinze anos mais nova que Emílio de nome Seraphina Lanza, apelido Pinota.

O pai de Pinota fugira da Itália e veio para o Brasil depois de, enciumado, lançar pela janela de um terceiro andar o rapaz que despudoradamente dava em cima de sua mulher Demètria, mãe de Pinota, numa festa em Turim. Ao ver o pobre galanteador estatelado no chão, fugiu incontinente para não ser preso. Só disse à mulher: "Venha ao meu encontro. Breve mandarei dizer aonde estou."

Sumiu, deixou Demétria sòzinha com três filhos, dois meninos e uma menina. Ciente que ele viera para o Brasil, Demétria juntou suas coisas, e com famílias de italianos que imigravam, veio junto, carregada de filhos, na esperança de encontrar o marido. Nunca mais o viu, e julgando-o morto chegou a Ponte Nova, onde a esperava novo amor e um outro casamento. Contraiu núpcias com Neneghim Gariglio e teve com ele muitos filhos.

Neneghim não foi bom padrasto para os filhos de Demétria. Os dois rapazes fugiram de casa para ficarem livres dos maus tratos e tentar a vida por este Brasil afora, longe do tacape patriarcal. Pinota ficou, frágil e desprotegida, junto à mãe e ao padrasto que lhe metia medo. Tão ambiciosa quanto bonita, viu em Emílio o pai que não tivera e a segurança de que precisava.

Conquistou-o com a paciência que tem uma moça para quem a juventude fornece um tempo sem limite para viver e amar. Já Emílio, traumatizado por dois casamentos desfeitos de maneira trágica, esquivava-se a compromissos mais sérios com aquela menina tão doce e bela. Emma, olhar atento, alertava o irmão para o perigo de uma nova desilusão, a Pinota uma mocinha de dezessete anos, quinze anos mais nova que ele, na flor da juventude, que tomasse cuidado senão poderia transformar-se no bobão da corte. Emílio ria-se das preocupações e atenções exageradas da irmã com um riso bonachão de quem é todo segurança, e dava de lado com uma expressão glossando as observações, segundo ele ridículas da irmã.

O que Emma mais temia aconteceu, Pinota ficou grávida de Emílio e para dar a extensão do fato, revelarei a data: 1901. Nesta época as mulheres não haviam conseguido os direitos fundamentais na sociedade de que hoje desfrutam, e eram massacradas pelo regime patriarcal, que proibia a elas tudo, só pelo fato de serem mulheres.

Demétria quando soube teve uma crise de nervos e, desesperada chegou a ver sua filhinha jogada na vida de bolsinha na mão, catando dinheiro com a venda do corpo. Neneghim, padrasto, sentiu um certo prazer secreto pela desgraça da enteada mas tomou as suas dores e foi até Emílio saber da solução que ele tinha para o caso. Emílio comprometeu-se a se casar com Pinota assim que o bambino nascesse. O que Emma não queria estava acontecendo bem mais ligeiro do que era de se esperar. A mocinha tinha astúcia e o maduro Emílio, grande mecânico, estava sendo comandado como se dirige uma máquina.

Um Parênteses

Não pude me conectar no dia certo, mas sei que o que vale mesmo é a intenção... Quero fazer aqui uma homenagem ao meu mano e padrinho Américo, o verdadeiro autor deste blog, onde quer que ele esteja, pela passagem do seu aniversário no dia 23 de julho. Fica aqui a minha eterna admiração e agradecimento pelo tesouro que ele deixou e que compartilho com a família e os amigos... e aproveitar para lembrar do pai Américo e parabenizá-lo também, pelo dia 25 de julho.
Alex

Tuesday, July 18, 2006

9- A Maldição

Américo Saporetti Filho


Vez por outra Emílio se lembrava de uma cena d'Itália envolvendo seu pai Rinaldo e um padre da região que culminou com uma praga clerical além da excomunhão. Rinaldo, apesar de pobre, conviveu com a fidalguia italiana e era apreciado pelo seu bom humor e espírito. Saía sempre em caçada com eles. Com boa mira, bom "faro" e presença agradável, alegrava os nobres e ajudava-os nas tarefas menos fidalgas. Enfim, era um sátiro e gostava de viver a vida, desta forma encostava-se cuidadosamente nos poderosos.

Vai daí que sua modesta condição de plebeu deu margem a que um padre do lugarejo o humilhasse, menosprezando-o. Ao receber a caravana de fidalgos que procurava abrigo, ríspida e preconceituosamente dirigiu-se a Rinaldo e indicou-lhe a cozinha e o quarto dos criados.

Os nobres acharam graça e riram do inusitado da situação. Aos nobres é permitido rir do que bem entenderem e não há classe que mais ri que ricos e abastados. Principalmente da desgraça dos outros, sejam pobres ou ricos.

Aqueles sorrisos martelavam os ouvidos e penetravam seu corpo, criando dentro dele tal obsessão de vingança que lhe tirou o prazer de viver e encheu-o de vergonha de olhar as pessoas e a mulher nos olhos. Passou a pensar vingança contra o cafajeste do pároco e contra toda uma instituição. A sua vingança revestiu-se de soberba, orgulho massacrado e grotesco que trouxe sobre ele a pecha de infame, perseguido pela unida classe dos padres de Roma.

Emboscou numa tarde de domingo o clérigo que o humilhara quando este retornava à paróquia por um caminho deserto. De carabina em punho, obrigou-o a descer do cavalo, levou-o ao mato próximo e exigiu que ele obrasse. O padre tilitando de medo, tirou a batina, abaixou a calça e a cueca e obrou com facilidade.

Rinaldo tirou os talheres da algibeira, entregou-os ao padre e com voz autoritária, de cima do seu cavalo, a carabina na direção do eclesiástico ordenou: "COMA!"

E o padre comeu o que obrou aos vômitos. Rinaldo ainda forneceu um garrafão de vinho para amenizar os enjôos e malestares do vigário. Vingado, meu bisavò deixou o pobre padre bêbado, nu e lambrecado. A igreja italiana em peso voltou-se contra tamanho monstro capaz de tamanha hediondez contra um representante de Cristo na terra.

A perseguição foi tão intensa que Rinaldo Garavini não teve escolha: alistou-se nos exércitos de Garibaldi e tornou-se um garibaldino, tendo participado da Unificação Italiana. Desta forma lutava por uma causa que o fascinava, ficava longe dos fúteis nobres e protegido da perseguição implacável dos padres de Roma.

Assim Emílio revolvia o passado à procura de explicações para tamanho sofrimento. Será praga dos padres? Não acreditava que praga de padre surtisse efeito danoso: não passava de superstição popular que envolvia toda uma classe privilegiada pelos donos dos mistérios e dos dogmas que tanto pavor causam aos humildes e aos beatos.

Suposições iam e vinham e a cabeça do italiano de Bologna trabalhando em ritmo febril não encontrava resposta satisfatória. Como perdera duas esposas e dois filhos no primeiro parto, tomara uma decisão: não mais se casaria para não colocar em risco a vida de outras mulheres. Ponto final, viveria sòzinho, apesar de detestar a solidão.

Dedicou-se então de corpo e alma à fundição e às obras de uma casa que desde a morte de Anita adiara começar. Esta casa ele a construiria na praia para a irmã Emma e foi a primeira casa em Ponte Nova com água e esgoto e outras inovações da técnica mais avançada da época. Quem também valeu a Emílio nesta fase difícil da vida foi o cunhado Innocencio e a irmã dona Emma...

Tuesday, July 11, 2006

8- Emílio ama... e sofre.

Américo Saporetti Filho

Emílio nunca misturou vida profissional com vida íntima, e assim pode ser o grande e próspero mecânico comandante da Fundição Progresso a par dos incontáveis baques e traumas sentimentais que sua vida amorosa estaria sujeita. Em 1895 meu avô rico foi à Itália, Bologna, buscar sua noiva Júlia que o aguardava há mais de três anos. Casou-se com pompas de verdadeiro fidalgo e deixou de queixo caído os que o taxaram de aventura burlesca a vinda para o Brasil.

Júlia, italiana bonita, cabelos pretos cacheados, parecia uma madona de camafeu, tão branca era sua tez. Pequenina do tipo mignon, disfarçava um pouco usando saltos altos e cabelos penteados altos. Estas pequenas estratégias iam por água abaixo quando estava junto de Emílio, alto, forte, porém extremamente gentil com sua "piccola moglie".

Como era comum e de bom tom naquele fim de século, sem anticoncepcionais, quando as famílias giravam em torno de cinco filhos em média, Júlia engravidou logo e o lar de Emílio se encheu de alegria para esperar o primogênito. A gravidez foi normal: enjôos, boca ruim, desejos, coisas comuns quando a mulher está fabricando um novo ser que lhe extrai as vontades e lhe põe outras. Os nove meses de gestação voaram como voam as flechas tão ligeiras que atingem o coração da presa. Emílio, dividido em dois, vivia duas vidas: a da fundição, aonde como factótum era pessoa indispensável requisitado como um médico a toda hora e para todo lugar, e o Emílio marido e futuro pai, com o filho crescendo na barriga da mulher a se mexer e se revirar, marinheiro de primeira viagem sem experiência e sem saber o que fazer nas ocasiões mais simples e comuns.

Tranquilamente dedicava à boa Júlia extremos de gentilezas e bem estar, para com isto inclusive abrandar o choque da adaptação ao Brasil.

O dia do parto foi triste para o forte Emílio. Sua pequena Júlia não chegou a ter o bebê tão aguardado. Vieram as contrações, chamou-se a parteira, o menino tentava nascer, a mãe forçava para que ele nascesse mas a bacia dela era estreita ou a cabeça do bebê era grande demais. Os dois morreram de maneira brutal, ceifados pelo amor, um encravado no outro. Não se fazia cesariana naquele tempo: os meninos deviam nascer pela vontade de Deus.

Emílio estava agora viúvo e triste.

A recuperação dele só foi possível pelo trabalho árduo na fundição. Absorto nos afazeres esquecia durante o dia a meiga Júlia e o filho que, de uma vez, perdera. Sòzinho no quarto escuro, quantas noites não dormira divagando sobre a razão da vida e a tênue divisão que a separa da morte.

É comum nos estados mórbidos encontrar-se respostas a muitas perguntas que gravitam nossa órbita sem solução nos tempos de alegrias e paz. Vovô Emílio viveu a morbidez da morte de Júlia com seu filho se debatendo em seu ventre durante um longo período de sua vida. Deixou de gritar com os funcionários, esqueceu-se que a fundição funcionava com seus pontapés. Nauseado, meditava muito quando devia agir, e contra seus princípios vivia do passado, esquecia o presente e nem cogitava do futuro.

Salvou-o seu cunhado Innocencio (nesta época Innocencio já se casara com a irmã Emma) quando chamou-o às falas intimando-o a levantar a cabeça e continuar a vida. E acrescentou que isto devia querer Júlia aonde estivesse.

Ainda foi Innocencio que apresentou vovô a uma filha da terra brasileira de nome Anita, irmã de uma tal Satana. Dizem que Anita lembrava Júlia, cabelos pretos, tímida e pequetita. Emílio renasceu e tornou com intensidade à vida.

Não esperou muito e estava casado de novo. A alegria completou quando a barriga de Anita começou a crescer e ela pudicamente anunciou que lhe daria em breve um filho.

Havia ainda de não ser esta a felicidade completa deste italiano de boa cepa. Anita também morreu de parto depois de luta desesperada para fazer o filho nascer. Nasceu, viveu algumas horas mas não resistiu. Um meninão bonito, cabeça grande e perfeitinho.

O enterro dos dois, caixão roxo e caixãozinho branco, vovô acompanhou cabisbaixo, olhar fixo num ponto imaginário no nada, perplexo por tanta crueza de vontade divina.

"Será que Deus existe? Se existe porque me maltratar tanto?"

Raciocinava: "Será que este é o preço que pago pela vingança que papai Rinaldo infringiu contra um padre de Bologna? É bem possível, é bem possível".

Chorar Emílio não chorou, mas sofreu sem desabafo e voltou para casa com o coração estraçalhado.

Sunday, July 02, 2006

Nota aos familiares e amigos deste blog

Queria aqui esclarecer o fato de que o meu irmão Américo escreveu a história concomitante dos antepassados Saporetti e Garavini, respectivamente paternos e maternos . A história foi escrita por ele nos anos 80 e leva o nome de SAGA, se referindo às iniciais dos dois sobrenomes... A princípio pensei em excluir os capítulos referentes aos Garavini pelo fato do blog ser em nome dos Saporetti. Mas acabei optando por incluir os capítulos, porque sei que estão interligados e fazem a estória mais completa e com mais sentido. mesmo porque temos na família duas irmãs Garavini (Beatriz e Ginette) casadas com dois irmãos Saporetti (Eduardo e Américo), abrangendo assim mais do que apenas um ramo da família. E mesmo pelo fato de ser uma estória cheia de elementos interessantes de drama e intriga. Espero que gostem.
Um abraço,
Alex.

7- Os Garavini

Américo Saporetti Filho

Emílio Garavini, meu avô materno, deixou a Itália logo que completou a maioridade. Seu pai, Rinaldo, garibaldino convicto ma non troppo, estava preocupado com a unidade italiana já que seu chefe, o grande Garibaldi, não existia mais. Sua mãe Serafina desejava deixar a Itália em busca de novas oportunidades no Novo Mundo. Atormentava-a a luta inglória pela sobrevivência e a perseguição religiosa e política em que viviam. Sua prima partira com toda a família para o Brasil de onde escrevera contando as belezas rústicas deste país tropical, aonde tudo era por fazer mas com campos férteis e povo hospitaleiro e gentil. Terminava sempre convidando-os a deixar a Itália e vir para o Brasil.

Brasile, Brasile, o jovem mecânico formado com louvor pelo Arsenal de Guerra de Bologna começou a sentir o comichãozinho do bicho aventureiro puxando-o para a América. Se neste país tropical tudo ainda está por fazer, melhor, pois poderia usar o que aprendera em benefício de um povo.

Encasquetou que viria, e nem os apelos de amor da noiva Júlia o demoveram da idéia. Iria e em pouco tempo viria buscá-la. Através do consulado brasileiro em Bologna tratou dos trâmites para a sua imigração. Não iria para a lavoura, era estudado e tinha lugar garantido para utilizar na plenitude seus conhecimentos. Preferia a província de Minas Gerais aonde estava sua prima.

Em 1891 Emílio embarcou sòzinho para o Brasil com a promessa de mandar buscar em breve seus pais e sua irmã e voltar para se casar.

Após a praxe legal foi para uma oficina mecânica, como encarregado, em Tabuleiro do Pomba, mas acumulava as funções de mestre de produção, modelador e chefe de manutenção... bem, só não era o dono.

Nesta época estava sendo instalada a Usina Ana Florência em Ponte Nova e a empreitada em mãos dos irmãos Innocencio e Adalberto Alves Costa. A fama de mecânico como poucos levou o nome de Emílio até Ponte Nova e aos ouvidos dos irmãos Alves Costa. Innocencio não perdeu tempo, selou um cavalo e partiu para Tabuleiro do Pomba à procura do mecânico tão formidável. Entre o filho da terra, mulato forte, e o imigrante altivo e bom iniciou-se uma amizade que duraria por toda a vida. Pode-se sem exageros afirmar que nasceram para ser amigos.

Quando o convite foi feito para transferir-se para Ponte Nova implantar a oficina e fundição e tratar de montar o engenho da Usina Ana Florência, Emílio aceitou prontamente, condicionando-o sòmente que Innocencio financiasse a vinda da sua irmã Emma, dos seus pais Rinaldo e Seraphina, pois prometera a eles que logo os traria para o Brasil e não aguentava mais de saudades. Quanto ao casamento, iria à Itália se casar assim que a montagem terminasse.

Innocencio consultou Adalberto, e de comum acordo aceitaram a contraprposta. Emílio então mandou buscar a família e em 1893 chegavam todos a Ponte Nova.

Faltava-lhe para completar a felicidade ir à Itália encontrar-se com sua noiva, casar-se e trazer a esposa para junto do seu novo lar. Mas antes muito trabalho o aguardava e urgente. No Brasil do início do século em pleno interior de Minas vovô Emílio encontrou tudo por fazer. Como gostava de desafios em vez de amedrontar-se, encheu-se de Ânimo e pôs-se de corpo e alma à empreitada.

Primeiro montar a Oficina Mecânica e Fundição que daria suporte técnico à instalação do engenho da usina de açucar da Ana Florência. Tudo foi feito com a dinâmica do trabalho de quem sabia o que devia fazer, onde e como.

A Oficina Mecânica e Fundição Progresso nasceu da fibra deste italiano empreendedor e vive até hoje como A. Fonseca Ltda. O início foi difícil, as condições eram péssimas e não havia mão de obra especializada. Passo a passo, com vontade de ferro, Emílio arrumou o galpão da praia, instalou o cubilô e fazendo componentes e acessórios, comprando só o essencial, organizou a fundição que hoje é orgulho do povo pontenovense.

Faltava mão de obra e teve que arranjá-la a tapa. Assim era a lei da época. Recrutou rapazes que desejassem aprender ofício e os colocou a seu lado na fundição por quatorze ou mais horas por dia. Enquanto aprendiam ofício não tinham direito a salário e o patrão podia ensiná-los a bofetões. Emílio usava deste privilégio que os pais lhe concediam. Seus alunos aprendiam o ofício por bem ou por mal, mas o certo é que sempre aprendiam, e dentre aqueles meninos simples e sem cultura, que tiveram a ventura de receber tapas, bofetões e pontapés daquele bolonhês corpulento, surgiram os melhores mecânicos que a região já conheceu.

Emílio tinha o porte ereto e andar elegante, mãos grandes, nariz afilado e reto e bigodão preto bem cuidado, cabelos ondulados partidos de lado com entradas prolongadas, olhos claros com ligeiro e disfarçado estrabismo, elegante no vestir e no andar, mais parecia um descendente da família real italiana exilado no Brasil. Gentil nos gestos e galanteador, foi cordial e agradável com as moçoilas que lhe passaram perto.

Porém dentro da oficina ou no trabalho seja lá onde for, transfigurava-se em Sô Emílio e não admitia falhas nem omissões e era o chefe "il capo", o durão, o exigente, o comandante. Todos o respeitavam e ai dos que não o fizessem, seu tapa era violento sempre acompanhado de um pontapé com botina de bico de ferro no traseiro. Palavrões de altíssimo calão completavam a cena dando-lhe, na falta de outra comparação, conotação poética.

Encravada entre morros e cortada pelo rio Piranga, Ponte Nova ainda não despertara para a vida cultural e sua infra estrutura era inadequada e deficiente. Não tinha rede de água e esgoto e suas ruas de terra batida eram empoeiradas. Quem podia, mandava seus filhos estudarem fora, de onde muitas vezes não voltavam, e se retornavam era para deter o mando e o poder sobre o povo simples e inculto.

Neste ambiente Emílio forjou uma nova ordem dentro da Fundição, ensinando com vigor, e quem sabe temperando em aço aqueles coitados que teriam que ser muitos mais rijos e saber muito mais, para enfrentar o poder e a riqueza com o saber.

Desta escola de vivência sairam muitos mecânicos de boa cepa, que assombraram a região com o conhecimento adquirido através de muito tabefe de Emílio Garavini. Dentre estes mecânicos estão seu filho Toni e Adolfo Parentoni.

Conversei com Adolfo Parentoni, velho lúcido com 82 anos em 1985, e ele me disse que tudo o que sabe se deve a Sô Emílio Garavini. "aquele sim entendia de mecânica. Nunca encontrei em minha vida um mecânico como ele. Hoje... hoje o pessoal não sabe afiar uma talhadeira - sabe o que é uma talhadeira? - e diz que é mecânico. Quanto pontapé e pescoção recebi daquele santo homem...Uma vez cortei este dedo (mostrou o dedinho mindinho da mão esquerda bojudo na cabeça e inclinando para dentro da unha torta) e sabe o que Sô Emílio me disse: Vá lá na latrina e mija no corte que sara, mas não demora...

Sô Adolfo deu uma bela risada. Depois com as mãos postas olhou para o céu com um olho já esbranquiçado pela catarata e quase em oração lançou este agradecimento: "Devo a Emílio Garavini tudo o que sou. Benditos chutes e pescoções que me deu".
 
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