FAMÍLIA SAPORETTI

Saturday, November 25, 2006

26-Os Filhos de Hugo: Virtuosismo no Futebol de Ponte Nova

Américo Saporetti Filho

Durante a vida de Hugo houve sempre um Saporetti nos campos de futebol de Ponte Nova, titular do PFC e comendo a bola.

Eduardo, primogênito, na função de 'center forward', levou o time a vitórias monumentais com a força de sua raça, sua impecável habilidade e presença dentro das quatro linhas. Eduardo sabia como levar a bola, como invadir a defesa inimiga, e como colocá-la com precisão dentro das redes do adversário. Era sempre caçado em campo pelos beques e defensores que eram desmoralizados pelos seus dribles, pelas suas fintas, jogos de corpo indefiníveis em astúcia e que sempre desestabilizavam o adversário e os enervava. Choviam pontapés, carrinhos maliciosos visando suas pernas, e cotoveladas. Após as partidas, Eduardo exibia escoriações e inchaços nas pernas, pés e corpo. Futebol do início do século era força, sem muita estratégia, alicerçado na habilidade, na garra e no amor à camisa. Quantas vitórias o Pontenovense não conseguiu baseado sòmente no binômio Raça Amor e Camisa.

Mas irônicamente o que fez este craque dos melhores, incógnito do interior de Minas, que faz até hoje suspirar os mais velhos e compará-lo aos melhores do Brasil? O que fez Eduardo encerrar a carreira de futebolista não foram as botinadas, nem as contusões que as teve aos punhados nos campos de futebol, mas sim um insidioso reumatismo precoce que o atingiu aos trinta e três anos e o retirou daquilo que ele mais gostava de fazer. Portanto, de 1915 a 1933, durante 18 anos, Ponte Nova pode ter o privilégio de ver, e os baetas de vibrar com o futebol delícia, o futebol malícia, o futebol habilidade, enfim, o futebol arte do filho mais velho de Hugo.

Mas não pensem que deixou o futebol, ah, isto não, nunca. Durante os quarenta e tantos anos que ainda lhe restaram de vida, dedicou-se a formar os jogadores do futuro como técnico do infantil do Pontenovense e antes, por muito tempo, diretor de futebol. Viveu até o fim de sua vida para o clube e o esporte que viu nascer e no qual foi um virtuose.

Junto com Eduardo, alguns anos de defasagem, surge para o futebol o segundo filho homem de Hugo, apelidado de 'A MURALHA DE CONCRETO ARMADO', pelo vigor, pela luta e pela firmeza do seu futebol de beque. Como uma intransponível muralha de concreto armado na retaguarda, não permitia o avanço da linha ofensiva do inimigo neutralizando todas as ações de ataque. Tio Lili está no folclore futebolístico da cidade como um dos mais perfeitos beques de que se tem notícia. Lutava com raça e com tal precisão, que deixava embasbacado quem menos prezava aquele jogador franzino de corpo, com aquelas pernas finas. Por trás daquela aparência frágil residia um atleta perfeito, numa época em que futebol não tinha o poder e a força que tem hoje, e ainda começava a entusiasmar de maneira incipiente as pessoas simples. Hoje futebol e carnaval são as duas forças mais vigorosas do país, envolvendo numa só massa, pretos, brancos, ricos, pobres e sem distinção de credo e de partido político.

Genioso e sistemático, sempre foi defensor fervoroso de que o Pontenovense devesse ter seu próprio campo, ao invés de utilizar o campo do Engenho, gentilmente cedido pelos Marinho numa área da fazenda. Hugo não ouvia as queixas do filho. 'Os Marinho são pontenovenses da primeira hora e não vão nos decepcionar. Além disso trabalhamos a área, drenamos o pantanal e fizemos melhorias na região. Não ferva sua cabeça com isto, meu caro Líbero.' argumentava, mas sabia que ali tinham uma situação provisória, de empréstimo, e que breve seriam obrigados a sair. 'Maldita propriedade, os homens nasceram livres, a propriedade não existia originalmente. Os poderosos tomaram conta de tudo. Salvem-nos dos poderosos'_ as convicções anarquistas de Hugo vez em quando afloravam. Num domingo de jogo Hugo desentendeu-se com Jaime Marinho, um dos donos da fazenda do Engenho, e, após a discussão violenta, este deu um veredito:

_'Vocês do Pontenovense não jogam mais aqui...'_ parecia o menino dono da bola que pára o jogo tirânicamente, e com a pelota debaixo do braço entra para casa e deixa a meninada boquiaberta, sem poder jogar seu futebolzinho.

Muitos tentaram conciliar a decisão do Jaime para que ele voltasse atrás, afinal a região havia sido drenada, gramada e estava impecàvelmente cuidada e mantida pelo pessoal do Pontenovense. Também, ponderavam outros, a atitude não caía bem polìticamente a quem tinha pretensões a prefeito. O povo não estava a favor nem apoiava atitude de tamanha prepotência. Jaime penitenciou-se perante Hugo, reconsiderando seu ato, segundo ele, fruto do seu gênio explosivo. Hugo aceitou as desculpas mas Lili não, e fez juramento solene:_'Naquele campo do Engenho eu não jogo mais...'

Hugo apoiou Lili, como era praxe sua apoiar quem estava com a razão, e então, em 1925, inauguraram o novo campo na chácara Crivellari, depois de um árduo trabalho de drenagem da região e preparação da área. Na luta contra a região inóspita valeram muito o ideal, a coragem, a força e a raça de pontenovenses autênticos de boa cepa. É bom lembrar a figura de Antônio Bodoque, que era o esteio de qualquer empreitada dos baetas e que foi de grande valia na construção do campo da chácara Crivellari.

O local deste campo é o mesmo, na Vila Oliveira, onde mais tarde foi construida a Praça de Esportes Juca Fonseca, que perdura até hoje, com a diferença que o campo construido por Hugo e turma estava em posição ortogonal ao que hoje existe lá.

A firmeza de opinião de Lili foi benéfica ao PFC. Dentro do campo como fora dele, Lili sempre foi uma muralha difícil de ser vencida ou ultrapassada. Aquela muralha só foi vencida por uma árvore, um eucalipto, que lhe caiu em cima num momento de distração. Não poderia ser de outra forma a causa da sua morte, naturalmente, ele viveria eternamente.

Américo, meu pai, com pouco mais pouco menos que quinze anos, já era titular do Pontenovense como 'center forward'.

Todos vocês já estão pensando e rindo matreiramente: mas assim é muito fácil, o pai sendo técnico, todos os filhos são titulares e bons, mesmo que sejam uns pernas de pau. Mas é bom ressaltar, não havia privilégios, não com Hugo. Oportunidades sim, estas ele sempre deu a todos, brancos e pretos, ricos e pobres, mas jogavam os melhores e os mais capazes, e seus filhos foram titulares porque nunca o decepcionaram e eram os melhores.

Há casos interessantes que demonstram a personalidade nada convencional de Hugo, assim como mostram o seu olho clínico em descobrir talentos. Eis um deles: O Pontenovense passava por fase ruim e não rendia o que se esperava dele. Hugo, preocupado, não sabia o que fazer. Um dia antes de uma grande partida, viu um garoto italiano jogando bola numa pelada de rua e gostou do estilo dele e perguntou se queria jogar no Pontenovense. O rapaz disse que sim, e era novo na cidade, se chamava Caetano, e já jogara em clube na sua terra de origem.

Hugo não titubeou. Tirou seu filho Eduardo da equipe e colocou o novato, e o Pontenovense ganhou de 2X1, com gol da vitória de Caetano. Dizem que Eduardo chorou muito por ser barrado. Assim era Hugo com o seu Pontenovense.

Voltando ao Américo, ele funcionava para o time como o armador de hoje, apesar de naquela época o futebol ser mais ofensivo, na base de 2-3-5 e não do 4-2-4 ou outros esquemas de retranca, marcação por zonas e que tais.

Conversei bastante com papai sobre seu futebol e o futebol do seu tempo, e sem nenhuma modéstia, sempre exaltou as suas qualidades de grande jogador e exímio goleador. Lendo os jornais da época, no que se refere às atuações do meu saudoso pai, eles dão a impressão de que Américo era um malabarista da pelota, e que muitas vezes prendia muito a jogada, e com isto deixava as oportunidades perderem-se.

Referia-se sempre com saudosismo, dose de nostalgia e muito orgulho ao convite recebido pelo Flamengo para integrar o plantel rubronegro no Rio. Numa partida entre PFC X FLA, os dirigentes do clube carioca ficaram entusiasmados com seu futebol e fizeram de tudo para levá-lo. Já estava noivo nesta ocasião, e mamãe não consentiu na sua ida, que só por ele teria fàcilmente se concretizado. Completava dizendo que foi a grande decisão de sua vida, pois futebol profissional na década de trinta era pura ilusão, e os jogadores profissionais mal pagos, e quase sempre acabavam na miséria. Não existia o fausto de hoje com contratos milionários, bichos, luvas e toda espécie de paparicação.

Caso interessante que contava, se referia à razão porque deixou de usar aliança. Contava que, numa partida, depois de cabecear uma bola na pequena área, foi cair dentro do gol, e se viu entrelaçado na rede. Sangue quente levantou para comemorar o tento. Viu com desespero que sua aliança estava presa à rede e que penetrara no dedo anular, quase o decepando. Depois desta data só veio a colocar aliança após as bodas de prata, por pressão dos filhos e dos netos.

O filho caçula de vovô Hugo, tio Nello, jogou pouco no PFC, mas deixou saudades com seu futebol inteligente e clássico. Com 17 anos, foi tentar a vida no Rio de Janeiro, e consta que jogou no Fluminense, mas os seus afazeres não permitiram que se dedicasse ao futebol, e aos poucos foi colocando de lado o esporte-arte para tratar de sobreviver.

Vi papai controlar bola várias vezes, e pude avaliar quão íntimos eram. Vi também uma partida de veteranos, onde estavam reunidos Américo, Lili, Eduardo e outros contemporâneos, e pude vislumbrar o que teriam sido aqueles senhores barrigudos, sem pique, quando com seus quinze ou vinte anos de idade, tal a cordialidade com que recebiam uma bola, o prazer e a gentileza com que a aninhavam no peito e a colocavam no chão, e a certeza com que dirigiam o seu caminho. Vi-os veteranos, com muito prazer e satisfação. Imagino-os jovens, num campo de futebol para a alegria da torcida alvi-rubra, os baetas.

Também Nello, sua classe, pude conhecer em 58 (ou 61?), num futebol de areia na praia do Leblon. Com seu corpo esbelto, que conserva até hoje, tratava a pelota como companheira, e colocava, com seus quase quarenta anos, muito rapazinho de vinte nos bolsos.

Foram uns virtuoses do futebol, deram muito suor pelo PFC, ganhando troféus, campeonatos, e fazendo vibrar a torcida e que serão sempre lembrados enquanto houver remanescentes daquelas épocas áureas.

Wednesday, November 15, 2006

25 - Eduardo e Beatriz, Mais um Encontro Saporetti-Garavini

Americo Saporetti Filho



Foto do casamento Edu/Beatriz. Ao lado da noiva em pé À esquerda Emílio e à direita Eduardo, Sentado ao seu lado está Toni, cujo ombro é tocado provavelmente por Zefina. À extrema direita, agachado, Hugo Saporetti.





Armazém de secos e molhados de Eduardo. Na foto, esquerda para direita, Lili, Eduardo, Hugo e Ida.

A primeira vez que Eduardo conversou com a saudável Beatriz foi num domingo de julho de 22, quando, esfuziante de alegria, depois de um jogo de futebol pelo Pontenovense, que venceu, teve a idéia de visitar a irmã Linda e ver como estavam ela, Santo, e o filhinho Innocêncio, seu primeiro sobrinho.

Desde muito que Eduardo vinha tendo uma queda por aquela moça tão prendada, professora, e de uma beleza com um não sei que de intransponível. Na Sombra das Éguas, num pique-nique com que comemoravam o sagrado Dia do Trabalho, primeiro de maio, esteve a ponto de abordá-la, e no seu sonho de juventude, dar a ela todo o amor do mundo. Mas em realidade baqueou, e o viril jogador de tanatas vitórias no gramado, perdeu a chance do gol e teve de amargar o sabor de adiar a oportunidade.

E, sem esperar, apesar de ter previsto, encontrou a sua musa dentro do quarto em que sua irmã amamentava o pequeno filho. Aldo sentou-se ao lado de Beatriz assim sem jeito, compenetrado e sério, olhando fixo para o bebê que, sonolento, sem deixar o peito, ora sugava ora cochilava. Beatriz, a culta Beatriz, falava e ele só via, sem ouvir, sabendo que o que ela dizia era certo e concordava com tudo que aqueles lábios carnudos pronunciavam.

Recatadamente, Beatriz estava explicando para Linda as vantagens do leite materno para a saúde das crianças. Todas deviam ser amamentadas com leite de peito, mesmo que para isto fosse necessário se arranjar uma 'mãe de leite'. É claro, afirmava, que não devíamos chegar ao exagero da época da escravidão, em que as mães pretas eram obrigadas a deixar seus filhos sem leite para amamentar os sinhozinhos e sinhazinhas.

Tal absurdo só foi admissível na escravidão por que, no seu embrutecimento, os donos de escravos consideravam-nos não como seres humanos, mas como objeto de uso e fruto. Eduardo, rapagão da vida, que levava o tempo a filosofar e a vagabundear, ouvia com atenção a mocinha bem vestida, cabelos presos em coque, rosto largo, mais para gordinha, que sempre estava com sorriso modesto no rosto e imensa tristeza refletida nos olhos grandes.

_'Ainda bem que a escravatura acabou, e hoje todos nós somos iguais apesar de tudo. E os pobres podem andar por aí.' _A frase saiu tímida e tremida e foi difícil Aldo completá-la para valer. A moça reparou mas relevou o nervosismo daquele moço forte e bonito, irmão mais velho da Linda e resolveu mudar o ritmo da conversa para assuntos mais amenos.

_'Já ouvi falar de você. Dizem que é um craque do futebol.' _ Aldo gostava de falar de coisas assim: futebol, pescaria, jogo, bilhar e sinuca. Aquele assunto era com ele. Lembrou-se da história de jogar o peixe n'água que lhe contaram recentemente (ou seria sapo?) isto pouco interessava no momento. Interessava, isto sim, que a Beatriz dos seus sonhos estava ali do seu lado querendo conversar sobre futebol.

E ele falou sobre futebol, enveredou para a pesca e embevecidos, esqueceram que estavam dentro do quarto do menininho, que já dormia a sono solto. Acordaram quando Linda delicadamente pediu-lhes que saíssem do quarto, ela pretendia escurecê-lo para que o sono do filho fosse calmo e sem nenhum tumulto.

Na sala o papo continuou animado, e sob os olhares dissimulados e incrédulos do coronel Emílio, começava ali, naquele domingo de julho, desta forma sutil e inexplicável, a relação de amor entre o grande jogador do P.F.B.C. (mais tarde P.F.C.) com a recém formada professora da Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora.

Mais uma vez a incoerência nas relações humanas entrou em cena ao levar estas pessoas tão diferentes em aspectos fundamentais a se unirem para viverem juntas por todas suas vidas. Aldo e Beatriz. Ele simples, primário, vagabundo, filósofo, aquele que não nasceu para ser alguém e que, como o pai, alegrava a todos com seu prazer de viver o momento presente, e que esbanjava habilidade em equilibrar e manipular a vida, as tristezas e fraquezas humanas.

Ela culta e bonita, estudada, professora, e totalmente ignorante da realidade da vida, iludida por palvras bonitas, apesar dos sofrimentos e traumas infantis, acreditando na espécie humana, e querendo se agarrar com todo vigor da juventude ao amor, e sonhando em ter uma família cheia de filhos, com marido, felicidade e prazer. Ah, a Beatriz, teria por terra todos estes devaneios em curto tempo, e, lutadora responsável, rígida mãe, severa esposa, aguentaria sòzinha todo o peso de uma família, que era preciso alimentar, cuidar, educar.

"Aldo e Beatriz, tão distintos no ser e no pensar, convidam para seu casamento na Igreja Matriz de Ponte Nova em 1923 e sentir-se-ão honrados com a presença de gregos e troianos para que presenciem uma união fadada ao fracasso, mas que insistem em realizar em nome do amor, da fidelidade e da esperança."

Nesses termos deveria ter sido lavrado o convite de casamento, mas é claro que não o foi, e esta consideração acre nada mais é do que uma avaliação e previsão dos fatos de quem vive a dezenas de anos depois que eles aconteceram.

O convite foi feito verbalmente, e o casamento íntimo para as famílias e os amigos mais chegados e de confiança. O velho Emílio ainda se ressentia da humilhação que a bela Pinota, amor de sua vida, lhe fizera, e não aceitava a sociedade espontaneamente e sim as pessoas de sua convivência em quem podia abrir-se, conversar despreocupadamente e confiar.

Por outro lado, o coronel gostava de festas e de vinho, e queria que sua bela bambina tivesse festa de deixar todos com boca aberta, uma festa de arromba, como Ponte Nova nunca tivera.

Vô Emílio ficaria magoado pelo resto da vida com tudo que lhe acontecera, e, como pessoa intimista e altamente responsável, era incapaz de prejudicar alguém. No entanto, esquecia e desprezava com uma força de leão, por toda a vida, quem lhe trouxesse dissabor ou que desmerecesse a confiança depositada. Assim foi com Pinota, assim seria com os Fonseca.

E assim o casamento dos primogênitos das famílias Saporetti e Garavini foi um acontecimento que deixou muita saudade, e que se comentou por muito tempo naquela cidadezinha da Zona da Mata mineira. Aldo e Beatriz, Beatriz e Aldo, casaram-se na igreja e no civil com todas as pompas. E a italianada toda estava lá, para uma gostosa palestra, que se tornava mais e mais acalorada e inflamada, em função da quantidade de canecos de vinho ingeridos. E vinho havia à vontade, como rissolis, copas e boa dança, que nisto vovô era mestre, e dançava até o sol raiar, e não enjeitava contradança.

De início, o vigário se recusou terminantemente a realizar o casamento daquele anarquista, filho de anarquista, não temente a Deus, e que não frequentava a igreja e nem praticava a fé católica. Um impasse desagradável, que teria que ser resolvido, senão podia empanar o brilho que se queria dar àquela cerimônia. Foi preciso a atuação de dona Emma, praticante do culto e assídua às missas de domingos, secundada pela presença marcante de Emílio e a promessa de levar o rapaz até a presença do pároco para que conversassem.

Assim foi feito e antes dos proclamas, tio Eduardo foi dissecado pelo vigário, que quis saber se era ateu, se batizado, qual o conceito que tinha da igreja e se católico, mesmo que não praticante. Aldo bem ensaiado, saiu-se bem, fingindo ser o que não era e tranquilizando a consciência do sacerdote. Foi uma brincadeira a mais na vida de quem viveu o seu tempo todo brincando.

E também, o que não faria aquele jovem romântico pela doce Beatriz, por aqueles grandes olhos negros penetrantes, aquele corpinho de garça assustada, pedindo sempre proteção e amor. Por ela negou diante da igreja católica suas convicções anarquistas, mas não deixou de praticá-las. Foi durante toda a vida um anarquista convicto, e este foi o seu mal. Beatriz não soube entender suas convicções e de gota em gota, tudo o que era maravilha se despencou na imcompreensão, que dá na desavença e na discórdia irreconciliável. Viveram juntos durante toda a vida para salvar as aparências e não traumatizar ainda mais os filhos, que já viviam com o estigma de terem a vó adúltera e o vô corno.

Tio Eduardo sempre foi um homem do mundo e seu apego não poderia ser, em hipótese alguma para sempre. Tia Beatriz não percebeu isto e exigiu que ele assumisse o controle e a responsabilidade do lar. Era obra hercúlea para nosso filósofo da vida que encarava o vagabundo como ideal.

Isto posto vamos ao casamento. Papai com oito anos assistiu com olhos de criança o casamento e me contou a festa. Hugo em terno branco e camisa também branca, paletó aberto, sorria seu sorriso franco e cheio de graça. O noivo, engalanado, num terno de tropical inglês, corte ganho de presente, gravata borboleta, cabelo partido ao meio, nervoso na igreja com a demora da noiva.

Tia Linda e tio Santo estavam sóbrios e bem trajados como padrinhos do noivo. Indiferente à cerimônia e correndo para todo lado, o pequeno Innocêncio, filho do casal, aproveitava a oportunidade para brincar e colocar em polvorosa o padre, a dona Emma, sua protetora, os pais e desviar a atenção de todos da cerimônia.

Como é bom ser criança e ter igrejas repletas para se brincar, casas com bibelôs e porcelanas e espaço para se viver despreocupadamente, só despendendo a abundância de energia que convive no interior do pobre corpinho, e que quer sair por bem ou quase sempre extravasar por mal.

Vovó Ida foi ao casamento - que sacrifício - com seu melhor vestido surrado, cabelos em pituca, sem nenhuma pintura, que vaidade não tinha nenhuma - acredito que não teve tempo de pensar em ser vaidosa, a vida não lhe permitiu esta opção - e vovó ficou o tempo todo sentada, com os pés fora dos sapatos, que lhe apertavam os dedos, acostumados a viver esparramados em tamancos bem folgados. Era sacrifício de dar dó ver a pobre vovó em festas de casamentos, enterros e que tais com sua fatiota e seus pés apertados em sapatos. Que desconforto, Santo Deus!

Tia Dora e tio Nello, pequenos, ficaram aos berros com vizinhos. Queriam ir. Américo não ia?...Papai, tio Lili e tia Vanda, em roupas simples, esperavam ansiosos pela festa. Para eles toda aquela cerimônia era patacoada. O que contava mesmo eram os doces, salgados e refrigerantes que estavam na casa da noiva esperando por eles.

A fama do Coronel Emílio corria solta em Ponte Nova e nunca uma festa sua deixou a desejar. Do lado da noiva todos muito bem vestidos, cheirosos e esbeltos, ostentando pompa. Toni, com sua basta cabeleira ainda em pleno viço, dentro de um terno azul com listras pretas, padrinho da noiva, sorria para as moças, aquelas com quem simpatizava, e mandava-lhes chispas com seus olhos claros. Reinaldo, o almofadinha, aproveitava estas oportunidades para fazer novas roupas dentro da última moda e lançá-las na praça de Ponte Nova e arredores. Nesta ocasião esnobava um belíssimo jaquetão com colete, a calça boca de sino, primeira a ter notícia o povo da cidade, lenço no bolso do paletó da mesma cor da gravata borboleta. Era patente no seu olhar a superioridade com que encarava tudo e todos que ali estavam. Vivia em Ponte Nova mas não pertencia a ela. Seus desejos e sonhos voavam sempre que podiam para São Paulo e em breve deixaria a cidade natal para lutar e enricar na cidade grande.

Emma e Emilédio, os gêmeos, juntos, belos, fortes, airosos, corados... quem os visse assim tão pródigos não podia nem sonhar o que o trágico destino lhes reservaria por serem tão saudáveis. Delumbrante, ela parecia ou merecia ser uma rainha naquele vestido preto de seda longo, deixando entrever a ponta de um sapato alto importado a cada passo, braços e colo nus, o pescoço envolto num colar de pérolas, pulseira no braço e anéis de brilhante. Flertava descaradamente com o rapaz da primeira fila, um jovem que deveria estar ofuscado pelo brilho das pedras e pelo esplendor de Emma. Gostava de namorar a Emma, mas antes gostava de trazer os homens de orelhas caídas e rastejando a seus pés. A identidade daquele rapaz se perdeu no tempo e nem ela mesmo saberia quem poderia ter sido se perguntada. O tempo escondeu a lembrança e não deixou lugar para uma cena tão insignificante. E o que teria acontecido a esse pobre rapaz que sentia ali o bafejo de um amor tão poderoso? Ninguém seguiu-o para saber.

Na igreja toda enfeitada de flores, a família e os convidados da noiva colocavam-se do lado direito e a família com os convidados do noivo do lado esquerdo. Simples convenção? Claramente distinguia-se os convidados do noivo e da noiva.

Dele eram os jogadores do Pontenovense Futebol Clube, operários, alguns italianos de contato e não muitas pessoas da sociedade. Eduardo como a família de vovô Hugo eram queridos na cidade, mais intensamente pelas pessoas humildes a quem defendiam e apoiavam nas suas reivindicações e eterna luta contra os patrões.

Do lado da noiva estavam as pessoas mais finas e requintadas da sociedade, ostentando seus vestidos da alta costura da época, e jóias e chapéus e tudo que tinham direito para uma ocasião tão distinta. Também alguns funcionários da Fundição Progresso. Para muitos vovô Emílio representava os patrões e a opressão que eles representam nas relações de trabalho. Emílio nada ligava para o que pensassem dele, e levava sua vida austera de muito trabalho sem dar a mínima importância para o que dele falasse a boca miúda. 'Nunca vou me candidatar a cargo político para ficar mendigando opiniões favoráveis'_ desabafava.

Dizem que foi discretamente vista na igreja com véu negro cobrindo todo o rosto, a mãe da noiva, a Pinota, que assistiu à cerimônia lá do fundo, protegida por uma coluna. Saiu furtivamente antes do término, com receio talvez de ser vista pelo coronel Emílio. Só suposições e boatos, nada de comprovado, ainda mais sabendo-se que a Pinota adquirira um medo mórbido ao ex-marido, que a fazia esconder-se em qualquer desvão, se pressentisse um encontro com ele, tremendo toda, como uma gatinha molhada em noite de inverno.

A festa, mais popularmente os comes e bebes, realizou-se na casa ampla da noiva, na rua da Praia, ao lado da Fundição. O noivo tentara de todas as formas junto ao sogro que permitisse a festa ser na sede do PFC, mas não conseguiu convencê-lo._'Lá não é lugar adequado para se receber todos os convidados, e também não se adapta a festa de casamento, e muitos convidados de outros clubes não colocarão os pés na sede do seu adversário nem mortos. Vê, meu caro genro, esqueça esta idéia que só iria nos causar transtornos e eu quero que tudo saia bem no casamento da minha querida bambina'.

E foi lá na casa da Praia do coronel Emílio que se deu uma das comemorações de casamento mais grandiosas de que se tem notícia na Ponte Nova daqueles tempos. Papai se lembra muito bem e diz que se tratou de um acontecimento que gravou na sua mente de menino de oito anos. Como aqueles fatos que não saem mais da consciência que eu, você, e todos nós temos, e que nos perseguem por toda a vida como parte integrante dela e da nossa formação. Papai se lembra dos quitutes, doces e salgados, dos convencionais e duns que nunca mais viu, e que sentiu daí para a frente só o sabor na boca e um ativar das glândulas salivares, lembra também do colossal bolo de casamento e das danças. Havia músicos tocando típicas músicas italianas. Vovô Emílio e dona Emma dançaram muito. Exímios na dança, apesar dos cinquenta e tantos anos, deixavam a todos de boca aberta pelo virtuosismo e pela leveza do corpo de ambos. Fred Astaire e Ginger Rogers. Emílio e Emma. Não faltou vinho, vinho italiano importado. Todos lembraram, depois de alguns copos, as terras d'Itália e cantaram canções típicas, exaltaram e explodiram corações. Alguns choraram, todos se emocionaram. As raízes e as origens são muito fortes e não há como furtar-se a emoções que entalam a goela e estraçalham corações de homens duros e rígidos.

Papai dormiu antes da madrugada e não pode ver o fim da festa, que só se extinguiu na manhã de domingo, com o sol belo e frio do outono. Foi então deixado deitado numa cadeira larga a um canto, e só acordou quando, altas horas, a mãe o cutucou, era hora de irem para casa.

A festa acabou, mas os comentários correram tempo e durante uma cena inteira foi lembrada e reverenciada como padrão.

Deste casamento tão pomposo nasceram Bebé (Maria Isabel) a 22 de junho de 1924, Élcio Emílio em 9 de julho de 1926 (morto com um ano e três meses, de crupe, a grande paixão de Eduardo) e Diana em de agosto de 1928.

As dificuldades financeiras sempre foram grandes para o casal, pois só Beatriz trabalhava duro como professora e trazia dinheiro para casa. Eduardo com sua sapataria, tribuna livre para todos e onde brotavam as reivindicações populares e as brincadeiras da cidade, e com seu futebol, não conseguia nem para salvar suas despesas. O coronel Emílio acatando os insistentes pedidos da filha, e só querendo o seu bem, financiou um armazém de secos e molhados para o genro, recebendo em troca algumas promissórias assinadas.

O negócio foi bem montado mas não foi para a frente. Tinha tudo para ser um empreendimento de sucesso, mas não o foi, pois todo mundo comprava fiado, a maioria não pagava, Eduardo não cobrava (_'Coitado, ele vai me pagar quando puder.') Aliado ao 'bom coração' faltava tino comercial e vontade de trabalhar duro. Tanto é assim que deixava o armazém nas mãos de empregados, ou fechava mais cedo para ir bater pernas pela cidade, ou treinar futebol lá no campo do Engenho.

Não demorou muito e foram obrigados a fechar o armazém para não quebrar de todo. Beatriz então teve de duplicar-se em trabalhos duros para pagar as dívidas. Aulas, costuras, doces para fora, etc, até altas horas, sábados, domingos, feriados. Quanto à divida com o pai, as promissórias assinadas, ele não cobrou e à mesa rasgou-as dando por encerrado o assunto._'E mais uma vez ali na minha frente eu levava na cabeça. Parte da minha herança foi rasgada à mesa para beneficiar um vagabundo.'_ sarcàsticamente comentou comigo tia Emma _ 'Era dinheiro meu que estava sendo rasgado por papai.'

Em 33 um reumatismo forte obriga Eduardo a deixar sua grande paixão, o futebol. Nesta época a convivência entre ele e Beatriz era insuportável, já brigavam demais, ela tentando trazê-lo à responssabilidade da vida que é luta, trabalho e consequentemente bem estar e prazer. Tudo a seu tempo e hora. Ele não estava preparado para isto e não entendia este falar.

O casamento desmoronava ràpidamente, as brigas passaram a acusações pessoais e a esposa com o apoio irrestrito das filhas ainda meninas arrasavam o esposo e pai. Eduardo começou a passar só o tempo indispensável com a família. Temendo represálias de toda ordem, evitava o contato com a mulher e com os filhos.

Contam que nessa época apareceu em sua vida uma crioula bonita, de feições amaciadas e sorriso lindo, anca avantajada, de nome Madalena ou Margarida. Eduardo, que em casa não tinha amor há muito, foi presa fácil deste estranho amor, que era quase só sexo e carinho, mas que lhe dava felicidade relaxante, pois não havia cobranças nem exigências sociais, nem ataque e malquereres. Vivia feliz em completo concubinato.

_'Quem herda não rouba. 'Diz o ditado, e ali estava ele, repetindo fatos vividos pelo pai com a negra Camila, porém de forma mais traumática, pois em função de uma total desarmonia no lar.

Beatriz não demorou muito a descobrir a traição. Italiana brava, foi até a casa da amante de seu marido exigir satisfações. No auge da raiva ou do ódio (hoje olhando a tia com mais de oitenta anos, semblante sereno, não consigo vê-la e descrevê-la dominada pela raiva e pelo ódio), repetindo, no auge do ódio e da raiva, reduziu a negra Margarida ou Madalena à sua condição de escrava que mereceria o tronco pelo que estava fazendo.

A negra ouviu tudo impassível, com a impassibilidade dos sofredores contumazes que se acostumam ao chicote, e ao fim falou com a firmeza do preconceito e com a força implacável de quem sabe tudo da realidade da vida: _'Sua branca criada a leite e pão de ló, pergunte ao seu marido porque ele vem até aqui. Pergunte também a ele o que eu tenho que você não tem para trazê-lo junto a mim. Vai e pergunte. Eu não sou ninguém, sua branca metida, mas eu tenho isto aqui'_ e batia insistentemente e freneticamente nas virilhas com a mão direita espalmada.

Tia Beatriz horrorizada saiu dali e não mais teve relações com tio Eduardo. Separaram-se de corpo e alma. Passaram a dormir separados e só viveram sob o mesmo teto a vida inteira para salvar as aparências.

Para salvar estas aparências eles sofreram muitas humilhações dos filhos e trocaram entre si palavras ásperas a vida inteira, o que aprofundava mais e mais a cada dia o abismo que cavaram entre eles.

Quando tio Eduardo morreu de câncer em 1975, tia Beatriz chorou o companheiro morto e talvez tenha chorado o amor que lhe dera e, quem sabe, também tenha chorado a felicidade perdia pela intolerância que acabou com este amor tão real. Agora nada mais havia a fazer, tudo eram saudades e flores murchas numa tumba de cemitério de interior.

Capítulo encerrado.


Monday, November 13, 2006

24- Mamãe e Sua Infância Solitária

Américo Saporetti Filho

Mamãe já crescidinha não saía da casa do pai Emílio na praia, e lá passou a conviver com os meio-irmãos Beatriz, Toni, Reinaldo, Emma e Emilédio. Tia Beatriz não aceitava aquela ligação do pai com a mulher de nível tão mais baixo e via mamãe com indiferença e quase com desprezo.
Tio Toni, padrinho de batismo da Neneti, gostava dela com o coração tamanho de um bonde e foi sempre e sempre será o eterno protetor de mamãe nesta terra em que, por ser filha bastarda, ela tanto sofreu em humilhações. Foi ele quem induziu vovô a apressar o reconhecimento da filha Ginette e que conseguiu que este assunto transcorresse o mais rápido possível. Graças a ele mamãe passou a assinar 'Garavini' em 1938, oito meses antes do seu casamento, com 17 anos.

Reinaldo deixou Ponte Nova cedo, como um cigano, e não me recordo de referências às suas opiniões sobre o assunto. Mas a contar pelas aparências e por contatos com ele e sua mulher Rosinha, não considerava mamãe como sua irmã. Sei que Reinaldo gostava de vestir-se na moda, era lançador de moda masculina em Ponte Nova, com seus belos ternos de linho com calça boca de sino e paletó jaquetão, e tinha paixão pelos carros, baratinhas na época.Tio Emilédio sempre foi um sensível coração de manteiga, e também volúvel. Vinha e voltava. Deve ter amado mamãe muito, como deve tê-la querido mal algumas vezes. Tia Emma disse-me que era obrigada (fez questão de dar este ênfase "obrigada") a fazer um vestido para mamãe todo ano no aniversário dela, por imposição do pai, e por isso nunca vai se esquecer da data: 11 de setembro. Esta obrigação deve ter vestido minha mãezinha de forma inadequada durante os seus aniversários infantis. Tia Emma foi incapaz de mandar uma saudação ou dar um abraço em mamãe depois que acabou a obrigação.

Pelo padrinho Toni e pela irmã Zefina e pelo pai Emílio, mamãe não saía da casa dos Garavini. Gostava também da ordem do banheiro limpinho, e não deixava de ficar extasiada ouvindo e vendo, com seus olhos de criança brilhando, o pai dançar com a irmã nas tardes de domingo e nas festas da família, com vinho, queijo e macarronada. Mas também notava a indiferença dos outros e sentia falta de companhia, e quase empre ficava isolada em seu canto. Não sabia adivinhar os porques. Por que sua mãezinha nunca ia à casa do pai, e tinha sempre uma desculpa para não acompanhá-la com Zefina ou com o pai, quando este a apanhava e levava.

Crescendo entendeu que o ambiente era hostil a ela, e à sua mãe, e se retraiu. Mas se retraiu tanto que passou a não ir mais à casa do pai, para não encontrar os irmãos e se aborrecer. Aos seis anos e pouquinho, mamãe foi matriculada no grupo e passou pelo Bê, A, BA da dona Rosalina Teles, e aprendeu a ler e a fazer contas, e no quarto ano pela mão de dona Sinhá Drummond, completou os estudos que a maioria das mulheres tinha direito, e a partir daí dedicou-se a aprender a costurar, que o casamento não demoraria, e toda moça prendada deveria saber enfrentar o dia a dia de uma casa e seus afazeres, com bastante desenvoltura e desembaraço.

Aos onze anos de idade, quando recebeu o diploma do primário, mamãe já era uma moça feita, de corpo perfeito, alta, magra, escultural, de cabelos castanhos, olhos penetrantes, rosto redondo e largo, e uma imensa vontade de viver o mundo, apesar de toda a opressão da realidade que a atormentava. Não conseguiria o seu intento de imediato. Primeiro teve que criar uma família numerosa para poder usufruir o que, naqueles tempos de juventude, parecia estar tão perto e ao alcance das mãos. Mamãe vive hoje a alegria da velhice. Não sei se é o que ela queria do mundo.

Em paralelo, papai vencia alguns obstáculos e por vezes deve ter topado com aquela menina bonita, que estava vez por outra na casa da sua cunhada Beatriz, casda com o mano Eduardo.

Iremos para lá agora...

Monday, November 06, 2006

23- Neneti e Zefina

Américo Saporetti Filho

Enquanto papai pegava no lápis e papel, e iniciava no Propedêutico o contato com as letras e os números, mamãe começava a vidinha de bebê junto da mãe portuguesa, e recebendo as visitas do pai italiano, derretido em alegrias e satisfações.

Tia Zefina aí pelos onze anos, era quem cuidava da higiene da pequetita nos primeiros aninhos. Trocava-lhe as fraldas, dava-lhe as mamadeiras e fazia-a dormir, enquanto a mãe tratava de outros afazeres domésticos.

A menina Zefina era ampla em cuidados com a 'irmã' em afeto, e tinha com ela carinhos e zelos que deixava a todos admirados. Aquela menina gordinha e branquinha, de cabeça grande e olhos vivos, foi a bonequinha desejada que nunca tia Zefina tivera.

Toda tardezinha, após as inúmeras tarefas da casa e deveres escolares, a pequena Zefina passeava com a irmãzinha pelos arredores, toda satisfeita e feliz, nem sentindo o peso e os safanões que era obrigada a suportar. Por vezes chegava a se desequilibrar, mas se acostumou a carregar nos bracinhos miúdos aquela bonequinha que logo começou a andar e a balbuciar as primeiras palavras.

Em casa, a Portuguesa abria os braços e chamava a filhinha que, tartamudeando cambaleava, passos indecisos, entrava toda nos braços e abraços da mãe. O pai, coronel Emílio, também participava da festa e, quase sempre a meninazinha ia em sua direção, parava a meio caminho e voltava em desabalada carreira para os braços da mãe que aos risos a envolvia e, no impulso, elevava-a ao alto, soprando-a na barriguinha, fazendo-a pororocar aos risos alegres de todos. A Zefina observava tudo à distância.

Numa ocasião Zefina, imitando as brincadeiras dos adultos que via de soslaio, deixou sua bonequinha cair ao chão. Por sorte só aconteceu um galo na cabecinha e arranhões no joelho. Mas foi o bastante para a sova de vara de marmelo e ficar sem jantar, além de proibida de pegar a 'Neneti'.

Ficar sem jantar e a dor e os lanhões pelo corpo eram comuns na vida dela, e assim fàcilmente assimilava-os, e, na sua cabecinha em formação, iam ficando mágoas que despertariam mais tarde. Mas deixar a queridinha Neneti, não a trazer no colo, não sentir sua mãozinha aveludada de encontro ao rosto, não a embalar nem dar-lhe comida, era demais e ela sofria com este castigo.

A pequena inocente vinha para o seu lado chamando 'Fina, Fina' e parava olhando para ela, colocava a mão gorducha no seu rosto, se sentava do seu lado, e ficava olhando intrigada a impassividade da irmã como a perguntar:_'Fina querida, vem brincar comigo. Você ainda é minha amiga?'

E tia Zefina, com o coração na mão, permanecia impertubável, num estado de tensão só comparável ao medo de desobedecer às ordens da Portuguesa. Mas a própria Portuguesa teve de relaxar a proibição, afinal não dava conta sòzinha de cuidar da filha e por cima, a idade e a paciência estavam rareando.

Zefina exultou quando a volta lhe foi pedida como se nenhuma proibição houvesse: _'Zefina, dá de comer à Neneti.' _'Zefina, não esquece de passear com a menina.' E foram voltando os afazeres que eram mais prazer que obrigação, e davam à vida daquela menina tão sofrida algumas horas de bem estar e êxtase.

Em pouco tempo as duas irmãs estavam juntas em todos os lugares, exceto, é claro, de manhã, quando Zefina subia o morro do Propedêutico até o grupo, para receber os ensinamentos básicos do ensino primário que, a contragosto, permitiam na época que as mulheres tivessem acesso. No caso da tia, foi o coronel Emílio quem convenceu a Portuguesa que era necessário, e que não devia existir preconceitos entre o que era para mulher e para homem, pelo menos no que dissesse respeito à cultura, moral e dignidade. E conseguiu convencer aquela mulher rude, mas que o amava e fazia tudo que ele pedisse.

Assim, aos dez anos, ela sentou-se pela primeira vez nos bancos escolares, com caderno, cartilha, lápis, borracha, o coração aos pulos, grande entre os meninos e meninas de seis e sete, mas com muita vontade de iniciar o Bê com A, BA, Bê com E, BE, Bê com I, BI, Bê com O, BO, Bê com U, BU.

Quanta alegria sentiu no início, no meio, e quanta tristeza no fim, por ter certeza que só aquilo era o que teria direito a aprender, um curso primário e olhe lá, que já estava recebendo demais, vencendo tabus. Naquele tempo mulher não precisava de estudo, e sim saber cozinhar, passar, cozer, arrumar a casa, ser boa mulher, dedicada ao marido. _'Mulher tem que ser prendada.'_ diziam quase todos _'e boa dona de casa.'_ completavam. Tia Zefina se formou em 1924 e tirou o diploma do primário quando mamãe estava com três anos de idade.

Após os estudos, a tia então concluiria a sua especialização para o casamento e aprenderia corte e costura com dedicação e habilidade no atelier de dona Emma, e encontraria no filho de Emílio, o grande Toni Garavini, o homem certo para se dedicar como esposa.

No atelier, revelou-se uma costureira de mão cheia da noite para o dia. Dona Emma admirava-a pela sua dedicação, por sua fineza, educação, e por estar sempre alegre, com um sorriso nos lábios, pronta para a próxima tarefa, para a próxima, para a próxima...

Surgiu então uma dedicação toda especial de dona Emma por aquela moça pequenina, que parecia sempre em paz com as pessoas e o mundo. Talvez uma forma de substituir a perda das duas filhas em 1920, ambas tuberculosas. E tal foi a dedicação da boa Emma por Zefina que esta, ao referir-se a fatos da sua vida em conversa comigo, mostrou-me retrato emoldurado daquela imponente senhora, guardado como preciosidade, e declarou-me com emoção na voz:_'Aqui está a mãe que considero. Esta é minha verdadeira mãe'.

Tia Zefina passou a viver no atelier de dona Emma, e a ir para sua casa só para dormir, com isso evitava um maior contato com a Portuguesa.
 
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