FAMÍLIA SAPORETTI

Wednesday, August 30, 2006

17- O Filho do Francês e Outras Peripécias

Américo Saporetti Filho

A família reunida por ordem de tamanho: Eduardo, Linda, Líbero, Vanda, Américo, Dora, Nello


Hugo, o Anarquista


Ida, a Fortaleza


Hugo sempre foi simples e desprendido com as coisas materiais.

Em primeiro lugar por princípio e filosofia: não dava valor à propriedade, antes julgava-a contra a moral e um furto, de acordo com os ditames do anarquismo; segundo porque era um homem bom que gostava de ajudar os mais necessitados e aí avultavam suas qualidades mais relevantes: a casa sempre cheia de amigos e a distribuição com os outros do que ele tinha a mais.

A propósito, ainda novo em Ponte Nova, 1915 ou 1916, tomou sob sua responsabilidade a criação de um menino enjeitado, filho de francês com negra, que mais tarde se tornaria grande jogador do PFC e um exímio sapateiro de senhoras.

Este caso se passou assim: próximo à casinha dos Saporetti no Matadouro, morava uma negra amaziada com um francês louro. Esse francês viera há pouco para o Brasil, mantinha ainda forte sotaque, e tirara a rapariga do mau caminho e botara casa para ela. Dessa união nasceu filho negro de nariz afilado e cabelo bom. Quando veio ao mundo o pai francês estava ausente na construção da estrada de ferro. Ficava tempos e tempos fora, a negra sòzinha guardando amor. Foi batizado na igreja por padrinhos escolhidos pela mãe, com o nome de José Benedito. Quando o francês voltou e viu o menino, não quis saber de reconhecê-lo e largou a mulher, acusando-a de tê-lo enganado. A irmã dele, também francesa, tratou de registrá-lo no cartório, só que com outro nome, registrou-o Odolgan, que mais tarde se tornou Odolga, sem o ene final.

Não demorou muito a estrada acabou e o francês e sua irmã voltaram à França. A negra que um dia conheceu o prazer de ser mulher de um francês bonito, culto e rico, voltou a ser puta, deixando o filho sem ninguém, ao Deus dará.

Vovô tomou a si a criação de Odolga, o grande jogador de mais tarde, e um dos poucos que tem um nome para Deus e outro...como direi...para fins legais e de direitos. Filho de francês que nunca conheceu Paris.

Odolga era gênio folgazão e admirava uma farra e uns mais golinhos avultados de cachaça. Muito cedo começou a trabalhar na sapataria de Hugo, mas bastava receber o pagamento para torná-lo em pinga e esbanjá-lo com mulheres. Para evitar isto, vovô recebia o dinheiro dele e ia dando devagar, controlando para as despesas essenciais.Com vinte e tantos anos, deixou a família que o criou, deixou o Pontenovense do qual era um dos craques da cancha, e deixou enfim Ponte Nova e foi para Santos em busca de vitória na vida. Colocou lá uma sapataria para senhoras e chegou a ter prestígio de bom artífice. Morreu novo de câncer, não casou nem deixou filhos, viveu em constante solidão.

Odolga, Odolga foi o filho francês de vovô Hugo e vó Ida. Papai sempre se referiu a ele com muito carinho e realçou suas habilidades de futebolista. Foi realmente criado como filho e não me passa pela cabeça que possa ter sido diferente na casa dos italianos Hugo e Ida.

Aos poucos Hugo começou a dominar a cidade que tomara como sua. Deixou a sapataria do sr. Edvirges e colocou a sua própria com Eduardo e Odolga como auxiliares. Ali, ao bater das solas, sentados nos bancos com assentos de tiras de couro, passavam para uma prosinha desde os doutores, os magistrados, até os operários mais humildes. E foi daquele quartinho pequeno e rescendendo a graxa e couro que surgiu a centelha da primeira reivindicação operária de Ponte Nova: pagamento semanal ao invés de mensal, e oito horas de trabalho por dia. No dia 16 ou 17 de novembro de 1921, tendo como representante o poeta Francisco Soares, houve uma reunião operária no Cinema Brasil para expor aos empreiteiros civis e aos encarregados das obras municipais estas aspirações tão justas e que hoje em dia já fazem parte integrante da vida de cada operário. Na comissão que se formou, quatro, lá estava Hugo Saporetti para lutar pelos direitos dos operários.

Das discussões que se prolongaram pela noite adentro, os empresários só cederam em fazer o pagamento quinzenal e que quanto ao resto não cederiam uma linha porque 'os operários estão muito bem situados na vida ao passo que os patrões vivem na mais extensa penúria'.

Discutia-se tudo na sapataria e sabia-se ali em primeira mão o que a cidade fazia e as mais graves decisões. Mesmo aquelas polêmicas, antes de serem levadas à câmara pelos representantes do povo, eram tratadas exaustivamente na sapataria de Hugo e mais tarde na de Eduardo.

Lá eram realizados os trotes dos calouros do Instituto Propedêutico e do Ginásio Dom Helvécio, que o sucedeu. O espírito de Hugo transfigurado no seu filho Eduardo, o tio Eduardo de tão gratas recordações de vida, me faz vislumbrar a sapataria como local de agradável vivência de mundo e de bem estar.

Mas vez por outra exageravam nas brincadeiras que julgavam inocentes e, justificadas pelo imenso prazer de viver que todos deviam ter, mesmo nas situações mais incômodas, conforme seus argumentos.

Brincadeiras inocentes de Hugo e Eduardo eram, por exemplo, espalhar tachinhas nos bancos para que incautos, ao sentar recebessem inesperadamente tremendas picadas na região glútea, e ao mesmo tempo doses maciças de gozações. Haja humor e prazer de viver para receber com um sorriso este tipo de brincadeira.

Também gostavam de substituir a manteiga do pão por vaselina e oferecê-los às moças simples da roça, em atitude que deixava revoltada a população com tamanho desrespeito aos pobres e humildes.

Mas estes senões que, postos numa lupa podem denegrir a imagem de uma pessoa, não chegavam a comprometer a beleza deste foco de luz e de decisões, desta tribuna popular que foi a sapataria do italiano anarquista Hugo Saporetti.

Certa feita, num trote, pintaram com tinta para sapato as genitálias do filho do Dr. Lins e as de outros calouros do Colégio Dom Helvécio. O assunto passaria como fato normal, não fosse o inesperado das consequências. O filho do dr. Lins foi acometido de violenta alergia e seus órgãos genitais tornaram-se brutalmente grandes, inchados, causando pânico nos pais e amigos.

Dr. Lins deu queixa à polícia, exigiu abertura de inquérito, e nos jornais atacou os anarquistas e vagabundos. Ao final de algum tempo tudo foi esquecido, também o filho ficou logo bom, o trote não deixou sequelas, e o sol continuou a mandar sua luz-vida para a terra, e a lua a embalar os namorados. No entanto durante muito tempo o médico guardou mágoa contra Hugo e Eduardo pelo susto que o fizeram passar.

A par de tudo isto a família de Hugo crescia: em 1912 nasceu Vanda, como já comentamos, pouco depois da chegada a Ponte Nova; em 1914 papai, batizado Américo um ano depois, em 1915; em 18 a alegre Dora, e finalmente em 1920 para encerrar com fecho de ouro, Nello com dois eles.

Quando tia Dora nasceu a família já se mudara do Matadouro para o morro do Propedêutico, mas a vida ainda continuava dura e difícil, sem perspectiva de melhoras, e sòmente uma filosofia de vida anarquista, tendo uma senhora Ida de vontade férrea à frente para suportar e dar rumo ao barco, podia amenizar.


Saturday, August 26, 2006

16- P.F.B.C.

Américo Saporetti Filho


A diretoria original do "Pontenovense Foot Ball Club", Hugo o terceiro da direita para a esquerda
O campo do Pontenovense, como era naquela época


_'Helás, figlio da puta'_ e seguia-se à expressão cortês um bom tapa de mão espalmada nas costas do amigo comprimentado.

Assim Hugo subia e descia a rua Municipal (hoje Benedito Valadares) saudando a todos, incentivando com sua extremada alegria de viver. E se era assim na rua Municipal, o era também na rua do Pindurico, na rua da Praia, na do Gavetão e por todas as ruas e lugarejos de Ponte Nova e adjacências.

Existem pessoas na presença das quais é impossível ficar indiferente. Hugo era uma dessas pessoas. Aonde aparecia a vida palpitava intensamente, e todos, ricos e pobres, cultos e analfabetos, patrões e empregados, participavam das situações que se apresentavam com vibração, arrebatamento e interesse. As situações se formavam como naturais e perfeitamente cristalinas. Porém bastava Hugo ausentar-se e tudo era envolto em uma estranha monotonia que por vezes acabrunhava e irritava.

Foi assim com a efetiva criação do P.F.B.C._Pontenovense Foot Ball Club. Quando Hugo chegou a Ponte Nova em abril de 1912, o clube oficialmente já havia sido fundado por alguns pontenovenses no ano anterior. Mas na prática não passava de uma idéia ainda borbulhando na cabeça destes jovens que gostavam do 'foot ball'.

De uma hora para outra, sem que ninguém lhe pedisse ou lhe tivesse outorgado esta prerrogativa, ei-lo empunhando a bandeira do PFBC, e como factótum de um ideal levando esta bandeira até onde uma vida de dedicação sem medir sacrifícios pode levar.

O PFBC, mais tarde PFC (Pontenovense Futebol Clube) se resumia em Hugo e era todo Hugo. Técnico do time, com aquele seu jeito gentil, exigia a presença de todos os jogadores aos treinos duas vezes por semana, mesmo que tivesse de convencer patrões para liberarem mais cedo os funcionários-atletas defensores do alvi-rubro.

E convencer os patrões significava sempre uma esculhambação, misto de exortação aos brios, palavrões com sentimentos nobres. Ninguém negava pedido de Hugo Saporetti e ninguém considerava aquele linguajar aparentemente obsceno e chulo como desmoralizante e grosseiro, era a forma própria de se comunicar com os amigos daquele imigrante tão cheio de vida e ideal.

De início o Pontenovense era só futebol, e mesmo assim sem local definido para seu campo. Servia qualquer lugar plano onde pudessem armar uma trave e jogar bola. Até que arranjaram o campo do Engenho, que durante muito tempo foi o campo oficial do PFC, na fazenda do Engenho, em local cedido pelo dr. Renato Marinho. A drenagem da área foi feita em regime de mutirão por Hugo, seus filhos e alguns pontenovenses fanáticos que começavam já a surgir; a limpeza, a plantação da grama após o corte das árvores, e por fim a colocação dos gols e a marcação do campo. Desta forma iniciava-se a consolidação de um ideal, com o campo de empréstimo para os treinos e as grandes competições. Após o primeiro jogo oficial do Pontenovense no campo do Engenho, Hugo não cabia em si de contentamento pela primeira fase conquistada e pela vitória na partida.

Contam que neste domingo reuniu-se em casa com todos os jogadores e regado a vinho tinto e gordurosos, comemoraram até alta hora o grande feito. Contam também que lá pelas tantas, Ida, que se mantivera solícita durante toda a comemoração, apesar das crianças pequenas a todo momento chorando, e precisando de cuidados, não se conteve, e àsperamente colocou todos na rua sem ouvir os apelos do seu homem já bêbado, e de toda aquela turba de fanáticos. O final desta festa teve de ser pelas ruas, que sempre para Hugo eram como sua casa.

O Pontenovense era a segunda paixão de Hugo, e vó Ida sabia disso e convivia com este amor do seu amor.Tanto que se desdobrava em manter os uniformes bem lavados e alvejados, branquinhos, passados. Lavava-os na beira do rio em água corrente, e depois colocava-os ao sol para quarar, e então dava-lhes a última enxaguada e deixava-os a secar. Passava-os com carinho e dedicação, remendava e restaurava-os, deixando-os como novos. Também hospedava jogadores novos que não tinham onde ficar, dando-lhes comida, cama, roupa lavada. Na sapataria eram feitos os remendos na única bola, importada, que servia aos treinos e jogos oficiais.

Nota-se que a família de Hugo respirava Pontenovense no trabalho, na rua, e no lar e todos eles tornaram-se torcedores, jogadores e defensores fanáticos das suas cores e ideais.

Sede? Não havia. Reuniam-se os 'baetas' (como eram conhecidos) inicialmente na sapataria de Hugo, depois em casa de algum dos integrantes, mais tarde alugaram pequena sede onde promoviam reuniões e faziam bailes animados por sanfonas, rabecas, violões. Por vezes Hugo era obrigado a transferir a sede com os poucos móveis, documentos e alguns troféus para sua casa por falta de pagamento do aluguel. Dessa forma mudava-se o centro de decisões para debaixo do teto de quem já tomava todas as decisões.

A fibra deste anarquista italiano fortaleceu o Pontenovense e salvou-o várias vezes da extinção total e fez deste clube, durante toda sua vida, a glória do esporte de Ponte Nova. Hoje quem vê e visita aquela belíssima sede em estilo colonial no centro da cidade, em plena avenida, junto à igreja, à prefeitura, aos cinemas e às melhores lojas, e também quem visita o conjunto esportivo com piscinas, campo de futebol, volei, basquete, na Vila Oliveira, nem de longe pode imaginar o que representou para Hugo e sua família, concretizar esta obra ou manter a chama viva do ideal. Mais tarde vieram juntar a eles homens notáveis como dr. Ordalino dos Reis, primeiro presidente oficial do PFC, Juca Fonseca, o grande benemérito e muitos e muitos outros que, na corrente de construir com todo o sacrifício o patrimônio social que recebemos de mãos beijadas, esquecidos dos suores e lutas.

Quando meu avô parou em Ponte Nova (e com este gesto deu um basta à vida nômade) com mulher e três filhos, mal podia imaginar o papel importante que teria naquela cidade, o inexplicável futuro. Um futuro que, ao se tornar presente, mostrava que seus ideais tinham de ser sempre levados em contato com o povo, dando prazer a todos, sem ilusão política, nem de bens materiais, levando-os a ter um pouco de bem estar, e motivação pela vida e desvinculando-os dos apegos do Estado e da sociedade.

Previu Hugo bem mais tarde que sua obra seria elitizada, quando mostrou certa apreensão com a validade da construção da sede, por ser, no seu modo rude de expressar, porém cheio de verdades, uma barreira aos pontenovenses de peito roxo: '_Os filhos de Antonio Bodoque, por serem mulatos, não vão poder entrar no clube. Vamos perder a nossa integridade. Por isso me preocupa a construção da sede própria!

A sede foi feita, pois a obra de Hugo já tinha vida própria, e não mais dependia dele. Neste ponto ela transcendia suas vontades. Nem ele ao desabafar tinha forças para brecar o desenvolvimento do seu PFC.

Mas a razão era de Hugo: seu clube hoje é elitista e preconceituoso. Nenhum dos filhos dos pontenovenses de boa cepa, por serem pobres ou negros, fazem parte dos seus quadros sociais e muitos pontenovenses que batalharam ombro a ombro para erguer tudo que existe de PFC, foram banidos em vida por escrúpulos e pudores de sociedade.

Mas estamos avançando demais os fatos, e atropelando. Faz-se necessário voltarmos.

Tuesday, August 22, 2006

Imagens de Ponte Nova

Vista da cidade, da "Praia" e "Copacabana" ao fundo.
Vista do Rio Piranga e uma das pontes.
Igreja Matriz de São Sebastião, de estilo gótico, na "Avenida".

15- Ponte Nova, Minha Cidade

Américo Saporetti Filho

Não posso, nem consigo retirar da minha pele o cheiro desta cidade cheia de montanhas, morros, morrotes, onde o sol parece subir num muro, olhar primeiro para depois saltar, com seu brilho estonteante, e que ao entardecer sai de supetão, quando se dá por achado - cadê o sol?- já está atrás do monte, o que ficou foram os matizes mais lindos de vermelho, amarelo, misturados com o verde esmaecido da vegetação no horizonte.

Ponte Nova habitou em mim nos momentos mais tocantes quando, inocente, descobria o mundo e o mundo era ela, o bairro de Copacabana, o rio Piranga do fundo da casa, os pássaros no quintal, as rolinhas em coleção, comendo restos das lavagens dos porcos, colocados em chiqueiros sob pilotis no quintal junto ao rio, protegidos das cheias.

Me castigou nos anos mais fortes e agressivos da minha formação quando, impotente, vi um amigo ser tragado pelo Piranga de tantas alegrias, e encontrei-me frente a frente consciente com a morte, morte que julgava não existir para os meus e para os amigos. Choque cruel e desalmado. Ponte Nova habita em mim na avenida junto às meninas, o coração batendo forte, imensa vontade de namorar, a garota escolhida, o não ir, fraquejando, e toda a cidade sumindo debaixo dos meus pés. A polícia espancando bàrbaramente um marginal, e eu tomando afrontosamente a defesa do fascínora.

Eu nasci, cresci e me formei em Ponte Nova e ela me viu, me repreendeu, me educou, e apesar dos pitos, sempre ao fim sorriu para mim, e me deu a mão nos momentos mais difíceis. Não consigo dissociá-la do que sou, e me lembro dela em cada coisinha que faço, em cada expressão que digo.

Estou quase há trinta anos longe, e é natural que eu e ela hoje sejamos outras pessoas, mas nas minhas recordações e lembranças, estamos por inteiro, e lá acordei para o mundo. E o mundo na época era só ela, suas montanhas, montes, morrotes, seu Piranga tortuoso, e suas ladeiras íngremes.

Por motivos fúteis alguns, outros de sobrevivência (será?) e até motivos por influências diversas, deixei Ponte Nova, pela primeira vez antes dos quinze anos, e depois em definitivo aos dezenove. É-se obrigado a sair porque o futuro está numa cidade maior, com mais recursos, com mais facilidades, e onde se possa estudar e progredir. E desta forma, alucinado por estas porções de razões que tumultuavam minha cachola ainda criança e inexperiente, deixei Ponte Nova por Belo Horizonte primeiro, depois por São Paulo, antes passando ràpidamente por Goiânia, num pioneirismo que até hoje me comove, e ao mesmo tempo me dá satisfação.

Hoje massacrado pelos centros urbanos, estressado pela carreira que abracei, pela falta de humanidade das pessoas, tão diferente da dedicação e companheirismo da minha cidadezinha, tendo de viver em contínua vigilância, e vivendo em medo, relembro com saudades aquele amor de cidade que me afagou durante a infância e a adolescência, e que me teria dado carinho e uma vida sadia, ainda que simples, se lá tivesse ficado até hoje.

Mas saí, e não vou viver outra vida para ficar. Saí e tenho pouca coisa da minha cidade: algumas fotos, um levantamento aerofotogramétrico com o pomposo título de 'Ponte Nova vista do cosmo', alguns recortes de jornais da cidade. Coloquei o levantamento em um quadro, e está aqui em minha frente, fazendo-me compreender, recordar, e reviver todas as vezes que me sento à minha escrivaninha, momentos que vivi ali e que estão aqui.

Lá está o Piranga, como todo rio, sinuoso, usando a lei do menor esforço ao se deslocar para, com suas águas barrentas e vermelhas, banhar toda a cidade e arredores. Mesmo rio Piranga cantado em prosa e verso pelos escritores da cidade que nele fartavam de achar pretexto para composições literárias onde a lua refletia, o amor fulgia, a saudade ficava e as lágrimas alimentavam aos borbotões suas águas.

Havia muito de romantismo exarcebado aliado à boemia sincera dos rapazes do primeiro quartel do século, sendo diluido quando chegou em mim lá por 1950. Assim o rio Piranga era o símbolo onírico da cidade. Sobre ele se construiu em 1921 a Ponte de concreto armado na praia que, aos menos desavisados, pode induzir como sendo a origem ao topônimo do lugar. Nada mais errôneo, já que Ponte Nova remonta quase à fundação da cidade e se trata de ponte construída sobre o Ribeirão Vau-Açu, em substituição à tosca pinguela que caíra. O pessoal do lugar, quando se referia ao lugar, Rio Turvo, usava como referência a ponte 'Vamos lá na Ponte Nova' e ficou Ponte Nova até hoje e creio que não mudará nunca.

No entanto sobre o rio Piranga a história se repetira. Na praia havia uma ponte de madeira rústica e velha a ligar uma margem à outra do Piranga. No governo Athur Bernardes, a ponte de concreto armado foi construida com ferragem vinda da Inglaterra. Conta-se que os vergalhões de ferro redondo em comprimento de seis metros de início causaram um sério problema de engenharia, já que eram necessária dezesseis vigas de 14,5 m. e oito de 10 m. de comprimento, armadas convenientemente.

Chamou-se então Emílio Garavini e vovô, com todo seu engenho e arte, caldeou um a um os vergalhões, dando assim condições adequadas para a construção da ponte que, até hoje, incrustrada na rocha e com o Piranga de caudal, ora tranquilo ora violento, é um orgulho da cidade.

Vieram outras pontes e pontilhões de estrada de ferro, sendo o Piranga trespassado em várias partes e com a maior facilidade, mas nenhuma das mais recentes tem a beleza e a elegância da ponte da praia (infelizmente em nome de um progresso abstrato e sem sentido, a prefeitura fez um adendo à ponte, desfigurando-a, é uma pena).

Rio Piranga no meu tempo de garoto abundava peixes, e quantas vezes papai e eu, com varas de bambu preparadas cuidadosamente, samburai que na região não tem este nome, é sacola mesmo, anzóis, linha de aço e chumbada, e latinha de tomate cheia de minhocas catadas no jardim, ou lacraias, junto ao lixão em frente à Fuzarca, na beira do rio pescávamos uma fieira enorme de piabas brancas, vermelhas e corvinas, num espetáculo que me emociona até hoje, e que muitas vezes me põe a pensar. Vezes sem conta.

O rio deixou de dar peixes quando resolveram despejar nele dourados para procriação com a promessa de fartura em peixes. Envolvido pela ilusão que as autoridades competentes me deram na época, eu me via pescando e comendo peixes os mais saborosos durante o ano inteiro. Decepção, sumiram os peixces nativos e dos dourados poucas notícias tivemos, apesar da pesca ter sido proibida por mais de par de anos.

No Piranga aprendi a nadar, tendo como professor meu pai, que se orgulhava de ter ensinado a todos os seus filhos a arte da natação. Na sua simplicidade papai ensinou-nos o nado comum do rio, braçadas descompassadas e cabeça fora d'água, ensinou-nos também a boiar, arte em que era único e, acima de tudo, e aí vai o seu grande mérito, desmistificou a água para todos nós. É difícil deixar o Piranga, tanto ele é importante para nós, mas é necessário seguir outros assuntos e vamos lá.

Thursday, August 17, 2006

14- Hugo em Ponte Nova

Américo Saporetti Filho


Nas fotos o contraste entre Hugo à esquerda, e Emílio, à direita...


O outro vô imigrante italiano aportou mais tarde em Ponte Nova, em 1912, no mesmo mês da tragédia do Titanic, e com mais de década de vivência, lutas e decepções em solo brasileiro. Chegou com mulher mais uma vez grávida e três filhos pequenos de pés no chão, e loucos para parar em algum lugar e sustar aquela vida nômade que em suas cabeças de criança não tinha mais fim e só trazia problemas. Esperavam todos que o cabedal de recordações tristes e de sofrimentos durante a passagem por São Paulo fosse substituido por uma vida segura nas Minas Gerais.

Meu vô Hugo, disseram-me, gostou de Ponte Nova e viu no povo a solidariedade e a cortesia que há muito procurava, e também me informaram que o ar puro da cidade melhorou as crises de asma que lhe atordoavam. Assim Hugo Saporetti disse 'Hellás' com seu sotaque característico, olhou para a mulher de um lado e para os filhos que brincavam do outro lado, e resolveu ficar. Ida gostou da idéia, cansada que estava de andar por este mundo, nômade como os ciganos sem nunca ter nada de seu, aceitou incontinenti, e assim Hugo tomou a cidade do Piranga, a Princesa da Mata Mineira, como sua pátria, e viveu ali a partir de então os seus momentos mais caros, com seu gênio bonachão, com suas idéias anarquistas, seu amor pelos pobres e oprimidos, e filósofo do vagabundo como ideal de vida. A cidade logo percebeu suas aptidões e deu-lhe sua primeira tarefa: fundar de fato o clube de futebol de Ponte Nova já esboçado e com adeptos.

Surgia assim o Pontenovense Futebol Clube, o alvi-rubro, o baeta, que ele consolidou na sapataria, e que levou para onde ia e onde ele estava, lá vivia o PFC. É difícil imaginar por quais dificuldades passou aquele italiano para manter a chama dessa obra e quem vê hoje a praça de esportes e a belíssima sede social, orgulho da cidade, e não vê mais a figura de Hugo Saporetti, acha que aqueles bens nasceram ali, e nem se preocupam em saber da sua história. O Pontenovense foi Hugo, onde estava Hugo estava a sede, o futebol, os bens da agremiação.

Senhores de Ponte Nova, quem foi Hugo Saporetti, Emílio Garavini, José Golla, e outros esquecidos que andaram por suas ruas ainda poeirentas, e ajudaram a fazer tudo o que está plantado aí como por encanto? Talvez um ou outro reminiscente. No esquecimento estão todos que fizeram a história desta cidade, e sem títulos ou galhardões comprados passaram sem reconhecimento, e o tempo se encarregou de cobrir de poeira os seus nomes.

No que tange a minhas recordações de família, Ponte Nova serviu de palco para as ilusões, desilusões, aspirações e toda a realidade desses dois italianos, com caráteres tão distintos mas tão atraentes que a Itália me mandou para avôs.

Emílio, o bolonhês, trabalhador infatigável, profissional como poucos, veio para o Brasil fugindo da miséria em que vivia na Europa, sonhava enriquecer. Empreendedor, montou a Fundição Progresso, ensinou aprendizes e formou mecânicos. Enriqueceu como quase patrão e, previdente, aplicou suas poupanças em imóveis e construção de casas, teve na Praia armazém bem montado de secos e molhados, repleto de artigos importados. Seu prestígio, aliado ao porte elegante e imponente, junto ao povo humilde, chegou a tanto que, mesmo sem patente, era alcunhado de Coronel Emílio Garavini.

Já Hugo, ravenhano, foi um anarquista manso em plena Zona da Mata mineira. Mantinha sua família sólida debaixo da batuta firme e rude de vovó Ida, mas não desprezava uma mulherzinha que lhe fosse apetitosa e acessível, rezasse ela por qual credo fosse, e tivesse ela qual fosse a cor da pele e a condição social. Nunca teve horários para trabalhar, e nem empregados aos quais impusesse o regime de seis da manhã às oito da noite, como era comum então. Renegava o trabalho assalariado e vivia para o hoje e o agora. A intensidade com que dispunha o presente na vida, independente de família, comida, sobrevivência, era algo que chegava em nossa sociedade constituida à vagabundagem, à negligência e ao despudor. Mas vovô Hugo vivia alegre e para os outros.

O PFC ficou inteiramente em suas mãos durante mais de dez anos. Foi o factotum do clube: técnico, preparador, psicólogo, dono da bola, quem conseguia jogos, em sua casa realizavam as reuniões, eram lavados e remendados os uniformes e fornecidas comidas e alojamento para os jogadores em pior situação ou necessitados.

Vagabundo por princípio, lutava por interesses dos trabalhadores, haja vista sua participação em comissões reivindicatórias sobre melhorias nos salários, e redução para oito horas na jornada de trabalho. Foi também ele que organizou a primeira festa comemorativa do dia magno dos operários em Ponte Nova, o dia do Trabalho, com um memorável pique nique na Sombra das Éguas, que seria repetido por anos a fio, sempre com a sua presença marcante à frente. Como colocava acima de tudo sua fé de que os operários deviam comandar o mundo sem dar satisfações a governos poderosos e opressores, incentivou a criação de uma associação de cunho eminentemente operária: surgia assim a Sociedade Esportiva Primeiro de Maio, maior rival do PFC. Muitos vão botar em cheque esta afirmação. Mas acredito na origem da informação, pessoa intimamente ligada a vovô, e também por estar de conformidade com seus desejos: apoiar tudo que fosse bom para o tão explorado trabalhador.

vovô Emílio e vovô Hugo, duas personalidades diferentes, que por essas forças estranhas que o mundo tem, tiveram suas famílias entrelaçadas por por mais de uma vez, por três, com casamentos e outros bichos.

Ponte Nova uniu os Garavini e Saporetti. Uma Ponte Nova simples, agrária e boa, tão diferente da Itália deles.Voltemos a ela...

Sunday, August 13, 2006

Emilio ou Emilédio???



Os documentos comprovam que apesar de todos o chamarem de Emílio, o nome verdadeiro era Emilédio. E que apesar do porte imponente, ele não era tão alto quanto a gente imaginava pelos textos: 1,68m... e tinha olhos acinzentados. E a data de nascimento era 19 de novembro de 1867 .




Saturday, August 12, 2006

13 - A Cidade dos Meus

Américo Saporetti Filho

Como se achava Ponte Nova no início do século, ao ser pisada pela bota firme e possante de Emílio Garavini, italiano rubro e gordo, figura agigantada, calmo nos modos, de perícia lenta, artífice perfeito no metal? Como seria ela ainda mocinha sendo possuida por aquele imigrante com beleza de caráter tão superior e pleno de aptidões profissionais?

Mais jovem e mais natural, seguramente sem as sofisticações que o progresso obriga a ter. Com muita coisa por fazer, vivendo a ansiedade e o entusiasmo dos jovens em realizar tudo com a vontade e o prazer que a juventude tem. Suas ruas não eram calçadas, necessitando de irrigação constante para que as nuvens de poeira, nas estiagens, deixassem de invadir casas, comércio e as pobres narinas da população. Aos poucos foram sendo calçadas de paralelepípedos, colocados um a um, lado a lado, por mãos simples e pacientes. Foram sumindo aos poucos o barro e o lamaçal das estações chuvosas e a poeira das secas. Sumiram também as famosas irrigações ou molhações das ruas, tão pedidas nos jornais da época. Hoje as ruas de Ponte Nova são asfaltadas como as de qualquer cidade progressista que se preze.

Em suas noites havia lampiões a gás, acendidos após as seis da tarde e apagados perto das onze da noite, excetuadas as noites de lua, quando a luz diáfana e sublime do nosso satélite substituia maravilhosamente melhor a dos lampiões. Uma noite de lua, que beleza. Uma noite sem lua, só de estrelas, que coisa mais formidável e gratificante.

A luz elétrica chegou em 1913 e foi inaugurada com festa e banda e bênção do padre capelão. Também hoje está iluminada como as melhorzinhas cidades do seu tamanho e sabe-se lá, protegida dos blecautes que estão sujeitas as grandes cidades integradas às grandes hidrelétricas.

Nesse tempo havia saraus e as pessoas prendadas se reuniam para mostrar seus dotes, alguns declamavam poesias, outros sentavam ao piano e dedilhavam peças clássicas com extremo virtuosismo, mais outras liam e todos comentavam trechos literários dos grandes da nossa literatura e da universal. As mães e os pais levavam suas filhas e participavam da escolha do futuro genro, muitas escolhas foram acertadas nestas festinhas de cunho literário e cultural, mas que ultrapassavam em muito só este sentido.

Comum estes saraus artísticos em casas de pessoas cultas ou ricas serem regados a comes e bebes na melhor tradição da fartura que marcava a época e desta forma havia o intenso convívio social, e a moça casadoira era apresentada ao rapaz bom partido, já prèviamente acertado com a família entre os pais. Breves namoros e casamentos para toda a vida se sucediam no melhor estilo patriarcal, que nesta época separação era caso sério, e jogava a pobre mulher separada vítima do escárnio público.

Os jornais eram vários e os jornalistas verdadeiros heróis que lutavam contra toda espécie de dificuldade para manter viva a chama da cultura e o gosto pela arte entre o povo. Hoje em Ponte Nova se acabaram os saraus e as festas e os costumes literários, e os jornais não conseguem ter um mínimo de padrão para manter a tradição de jornalismo atuante e independente das primeiras décadas do século.

Havia muitos imigrantes italianos já instalados e progredindo, quando vovô Emílio, sua irmã Emma, seu pai garibaldino Rinaldo e sua mãe Seraphina lá chegaram em 1893.

Ele logo tratou de travar contato com a colônia, que se reunia para os lados da Copacabana, na fazenda do Canuto. Reencontravam assim a Itália tão distante, e desta forma reviviam façanhas de juventude e infância, e relembrando fatos acarinhavam a terra querida, agora tão distante que muitos deles não voltariam mais a ver.

Alguns deles nem imaginavam que, ao vir para o Brasil, estavam selando para sempre a sorte de suas vidas e dos seus, e que num ambiente inculto e pobre, encontrariam toda a vontade de viver e todo impulso ressuscitado tão diferente da apatia e da estagnação que vivia a Europa, marcada pela miséria, desemprego e convulsão social.

Rinaldo, meu bisavô, colocou junto com Venturolli, italiano como ele, e que gostava de tocar na rabeca músicas folclóricas d'Itália, uma venda na rua da Praia de nome Venda Garibaldi, especializada em produtos importados, e também em trazer famílias italianas para a colonização das terras da região. Quantas famílias vieram para o Brasil pelas mãos do garibaldino de boa cepa Rinaldo Garavini, que morreria no início do século sem voltar à terra. Vô Emílio voltou algumas vezes à Itália, assim como mandou seus filhos, sua mãe, sua esposa Pinota e sua querida irmã Emma, mas sempre manteve aqui no Brasil e na pequenina cidade de Ponte Nova seu reduto de amor para viver e morrer.

Tuesday, August 08, 2006

Uma palavra aos parentes e amigos

Quero pedir desculpas pela qualidade de algumas fotos que estou publicando, mas para ilustrar alguns dos capítulos, estou escaneando as fotocópias de fotos contidas no volume que tenho datilografado à moda antiga por Américo. Estou vendo se consigo cópias melhores para substituir, mas por enquanto fica assim mesmo... dá para ter uma idéia e espero que estejam gostando. Um abraço,
Alex

12 - A Cidade

Américo Saporetti Filho
Ponte Nova e seus morros, provavelmente nos anos 60, no alto à esquerda a matriz de São Sebastião.

Vista de parte da "Praia" e, paralela à curva do rio, a rua que dá acesso a "Copacabana", que fica à direita, escondida pelo morro da igreja.


Já é tempo, neste estágio da história, de falar em Ponte Nova, a cidadezinha da Zona da Mata mineira que recebeu e abrigou uma grande leva de imigrantes que lá chegavam com entusiasmo, vontade de vencer e grande desejo de 'fare l'America'.

Por justiça e dever, apresentamos Ponte Nova com urgência, antes que tome conta da narrativa sem lhe ser dada permissão, e aja como estes meninos, que contra as normas dos pais, invadem as conversas dos adultos, dando opiniões e palpites nem sempre oportunos, gerando conflitos e malestares, e terminando sempre em sova ou ralhação ou ambos ao pivete intruso e abelhudo.

Ou, quem sabe, se não a introduzirmos já, ela se retraia e fique de lado, observando os fatos acontecidos e rememorando em sua mente que o tempo não apaga, como pano de fundo, as pessoas que passaram indo e vindo por suas ladeiras, suas ruelas, e seus caminhos e picadas, sem dizer palavra, indiferente à sua própria história, que é também a dos meus avós, dos meus pais, meus irmãos, amigos e minha.

Ponte Nova, Ponte Nova, preciso falar de você com toda a espontaneidade e sensibilidade de um artista e todo amor de um filho.

Não me cabe julgá-la pois às cidades não se julga: são bonitas, aconchegantes e cultas ou ao contrário pecam por um ou mais de um defeito, mas todas são amadas por seus filhos, ou por aqueles que, vindo de longe se deixam estar ali e adotam aquele lugar como seu, e fazem do lugar o sol de suas vidas. Ponte Nova, minha formosa cidade, sempre foi meu universo infantil, meu paraíso adolescente e minha saudade de adulto.

O Piranga tortuoso e barrento é meu rio de referência. Tal rio não é tão piscoso como o Piranga, aqueloutro é mais largo ou mais raso. Como são belas as curvas do Piranga. A praia, na curva do rio, é bonita nas vazantes. Nunca vi uma enchente tão forte como a de 50, quase que o Piranga submergia toda parte baixa da cidade. E assim por diante...

Minha cidadezinha tem Palmeiras, um bairro inteiro, e tem também Copacabana, onde nasci, e que até hoje me causa confusões com o homônimo luxuoso e imponente do Rio de Janeiro.

Palmeiras, Copacabana, Pito, Olaria, Gavetão, nomes de bairros e locais de Ponte Nova, tão representativos quanto representam histórias e saudades fundadas em recordações.

Como uma cidade nos penetra tanto e nos envolve com seu aroma, com seus traços, com sua fragrâncias, com seus esplendores, seu sol, sua lua, seu amanhecer, seu entardecer, sua poeira, seus paralelepípedos, suas casas, seus portões? Como uma cidade tem o dom de nos envolver, misturando a estática dos seus morros com a dinâmica das suas pessoas, com seus dramas e suas comédias? Como Ponte Nova está dentro de mim...

Sei que seria outro se nascesse no Recife, ou em São Paulo, Araxá, Poços de Caldas, Ouro Preto ou Campinas. Mas nasci em Ponte Nova, às margens do Piranga, desde pequeno subi seus morros, desci em desabalada corrida as suas ladeiras e me acostumei a ver um horizonte próximo e a desconfiar de tudo que estivesse além daqueles morrotes, onde o sol se levantava e deitava num espetáculo diário de extrema beleza.

Ali viveram desde o início do século XX meus avós italianos que o destino tirou da bota da Europa e trouxe-os através de mil peripécias para o Brasil, direcionando-os até a Mata mineira para que em Ponte Nova se encontrassem, e o mistério da minha vida e da vida de todos da família se consumasse, como se uma imensa matriz matemática de numerosas equações com numerosas incógnitas fosse resolvida.

Deixemos os desígnios de Deus ou da Natureza e voltemos à cidadezinha. Digo 'cidadezinha'e já repeti várias vezes, porque ela para mim é como uma pessoa tão íntima e querida que se chama pelo nome afetivo, aquele que mais cala ao sentimento e à dedicação.

É perigoso, sei, chamar Ponte Nova de 'cidadezinha'. Certa feita um filho famoso, grande compositor de música popular e meu contemporâneo, o João Bosco, por um deslize destes que só o coração compreende, numa entrevista a emissora de tevê deixou escpar o diminutivo ao se referir à sua Ponte Nova - 'É uma cidadezinha perto de Ouro Preto' - e teve toda a opinião pública da cidade contra ele, tendo à frente os jornais da cidade, que em veementes artigos massacravam a falta de consideração do filho ilustre. O assunto rendeu e foi preciso que uma turma de estudantes universitários se reunissem e publicassem um manifesto bem escrito e bem fundamentado para que o malentendido caisse pouco a pouco no esquecimento.

Fica o fato e o meu respeito apesar de chamá-la de cidadezinha. Uso 'cidadezinha' para ela como chamo de mãezinha a minha mãe. Ela gosta muito e, acredito, minha terrinha também. Aonde fica Ponte Nova?

Ao norte de Viçosa, Ubá e Juiz de Fora. A leste de Mariana, Ouro Preto e Belo Horizonte. A oeste de Caratinga, Teófilo Otoni e Governador Valadares. Altamente influenciada pelo Rio de Janeiro, a Capital da República, nos costumes, na moda e na cultura - só chegavam lá, e assim mesmo por trem, jornais e revistas da antiga sede da administração federal, há uns trinta ou quarenta anos atrás.

Com Juscelino no governo do Estado de Minas, foi ligada a Belo Horizonte por estrada de rodagem, hoje totalmente asfaltada, mas que pelos idos de 60 tinha trechos extensos que só eram transitados com o auxílio de tratores nas épocas de chuvas. Praias não tínhamos quando era criança, mas o pontenovense de uns tempos para cá descobriu o Espírito Santo e com isso dominou Iriri, Marataizes, Guarapari, garantindo a sua mais próxima saída para o mar, e o espairecer do corpo e do espírito.

São Paulo capital e São Paulo estado são como o que se conhece mas não se entende bem para o povo de minha cidade. No meu tempo de menino, anos 50, tinha por São Paulo um medo terrível, e esta cidade me aparecia em sonhos cheia de carros acelerados e buzinando numa azáfama incrível e desordenada, com pessoas impossibilitadas de atravessar as ruas e que de tão grande constituia um emaranhado profundo de carros, pessoas e prédios, difícil de entender.

'Não sei como se pode viver naquela cidade de loucos' - havia sempre conterrâneos que voltavam horrorizados e vociferando a quatro cantos contra aquela vida corrida.

Times de futebol que despertavam interesse e fanatismo na cidade eram do Rio: Flamengo e Fluminense, assim como as famosas novelas da Rádio Nacional do Rio, envolviam as mocinhas casadoiras, e as mulheres mães extremosas e esposas distintas, com emoções cheias de lágrimas e soluços, com as costuras à mão ao lado dos imensos rádios, a válvula com mil barulhos e chiados.

Corria dinheiro por todo o canto da cidade. As fazendas de café e cana prosperavam durante anos e mais anos fazendo fortunas, dignificando famílias e criando coronéis da Guarda Nacional, que tantas histórias trouxe ao nosso folclore e à nossa tradição.

Houve época que cinco usinas de açucar moiam cana para açucar e álcool. Até hoje a cidade mantém o caráter aristocrático daqueles tempos de apogeu e bonança.

A terra está cansada mas a cidade ainda vive envolta em um véu de pompa e de fulgor.
 
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